Recorro a uma memória distante. Produzido na década de 60 e fenômeno vespertino na TV nos anos 80, o filme As Sete Faces do Dr. Lao narra a história de um mágico chinês que chega a Abalone, uma cidadezinha no interior do Arizona, com seu circo repleto de atrações fantásticas e, nas palavras do próprio Lao, “únicas e nunca antes vistas”. É curioso que o tal mágico surja sozinho e levante uma improvável tenda nas imediações da cidade. A atração, que de imediato provoca um misto de excitação, riso e descrédito, toma os habitantes da pacata Abalone de sobressalto quando percebem que naquela tenda de um homem só, alçada pelo franzino chinês, todos cabem, tudo cabe. Atravessar aquela passagem significava, na verdade ganhar ingresso a outro mundo, onde os espaços não são correspondentes, onde as expectativas estão muito aquém do exeqüível.

À maneira do circo fantástico do Dr. Lao, a primeira visada de Meus Olhos não oferece promessa alguma: um quadro de luz composto por uma seqüência ordenada de lâmpadas fluorescentes bloqueia a passagem. Àqueles que persistem na busca por um acesso se lhes antepõe uma barreira mole de tecido branco e translúcido que não alardeia sua presença e não os convida propriamente ao ingresso. Até esse momento, a obra ostenta tão-somente um caráter não-expressivo, possivelmente tomado de empréstimo dos materiais de que é feita. Decidir por entrar, no entanto, também nos garante acesso a um mundo latente, talvez adormecido e posto em obra por Carlito: o mundo que se descortina é o mundo de Meus Olhos. Nesse lugar, o artista opera junções e disjunções e nos põe a duelar com nossa própria memória. O atordoamento que nos acomete causa mesmo lampejos de descrença sobre aquilo que acabamos de fazer, afinal, aonde foi mesmo que entramos?

De início, experimentamos uma espécie de sobreposição de realidades: o corredor nos parece mais longo do que o espaço que conhecíamos, o assoalho apresenta-se marcadamente desenhado, como jamais percebido, os batentes de porta se mostram em desalinho e um som contínuo, no limiar da abstração, insiste em pertencer àquele lugar. Tudo se passa enquanto o progressivo apagamento do já sabido nos invade.
Pergunto-me, então, como isso tudo é possível. Que operações permitem que aceitemos esse novo estado de coisas? Aqui não há jogos de câmeras ou efeitos especiais, mas, o que é mais desconcertante, tudo está à mostra e tudo é reconhecível: tecido sintético branco, lâmpadas fluorescentes brancas, abraçadeiras metálicas, reatores elétricos, fios elétricos, soquetes. A equação entre materiais e processos lhe confere, ainda, um caráter austero. Parece-me central, no entanto, perceber como sua objetidade se relaciona com a imagem que projeta: é como, mesmo, uma se escondesse por detrás da outra e a obra se equilibrasse no limiar entre a coisa e a imagem da coisa.

É como um jogo de espelhos que Meus Olhos é constituída: uma sala diante da outra, seus espaços rebatidos como se, de fato, pudessem se entreolhar. No centro do corredor, onde o desenho em listras diagonais do assoalho se encontra, parece haver uma lâmina de espelho, onde vejo tudo refletido. Tudo, não fosse por minha própria imagem que insiste em não se apresentar. A porção de tecido mais elevada no centro das duas salas, de modo a dividi-las em duas partes paralelas ao túnel, permite que o jogo especular continue para além, muito embora, devo enfatizar, dentro desse mundo-lâmina, experimente algo extenso, infindo. No segundo túnel, o sentimento do já visto dá lugar ao reconhecimento inescapável de sua imperfeição como espelho. Sem passagem, o fim desse túnel é mesmo um fim. Talvez não seja mesmo em uma alegoria de espelhos o lugar para encontrarmos nossos reflexos.

Para retomar a figura do meu clássico de infância, recordo-me que o circo de Lao e suas atrações desencadeavam um intrincado mecanismo a partir do contato com os visitantes. Sem que tomassem nota de início, os hábitos viciosos de cada um eram refletidos no circo-espelho de Lao e era assim, no momento em que se reconheciam em suas relações com as personagens que, de fato, se olhavam. A metáfora da imagem especular ali posta não é uma simples duplicação do mundo, mas uma abertura para um mundo ao qual não haveria acesso sem ele. O espelho é, assim, ferramenta cognitiva, cujo reflexo revela aspectos insuspeitos. O jogo especular de Meus Olhos se põe em ato quando nos dispomos a nos embrenhar em seu interior, quando aceitamos a suspensão que provoca na natureza de nosso mundo, quando nos deixamos refletir em seu mundo, quando reconhecemos nossa face em meio àquilo que ali por nós esperava.
by arteninja