Debaixo da cobertura de Niemeyer, que desliza em curva entre as paredes assimétricas do anexo da nova sede do MAC Ibirapuera, os postes são suspensos às colunas. A primeira impressão é de contraste: entre a descida suave do teto e a queda abruptamente interrompida dos troncos; entre as madeiras ásperas e fendidas e o branco imaculado e liso das paredes; entre o reto e o curvo, o contínuo e o fragmentado. No espaço abstrato da arquitetura, onde até a irregularidade é da ordem do pensamento, os postes introduzem fragmentos de vida real: as placas de ferro no topo, que os defendiam das infiltrações da chuva; restos enferrujados das braçadeiras que seguravam os fios; as marcas do tempo nos fustes; o desgaste das bases. Mas há também trocas: os postes furam as paredes por buracos toscos e se prendem às colunas quase imateriais por pinos e porcas vistosas. Agarram-se também entre si, como se tentassem se segurar à cega enquanto despencam.

A maioria dos postes tem pelo menos dois pontos de apoio, no chão, nas colunas ou em outros postes; mas a disposição foi determinada a partir da oscilação espontânea dos fustes. As madeiras não têm peso homogêneo: são árvores mortas, secam a partir de cima. A seiva desce para o pé e ali petrifica. Fendas se abrem no topo, onde a matéria é mais rarefeita. Fixados num ponto, inclinam de um lado, até encontrar o chão ou outro poste, de que determinam por sua vez a inclinação.

Todas as coisas caem, não apenas em relação ao espaço externo, mas também interiormente. Cientistas afirmam que alguns corpos sólidos (os vidros, por exemplo) são na verdade líquidos de altíssima densidade, que fluem com movimento contínuo, mas extraordinariamente lento. Para alguns deles, seria necessário um tempo maior do que a idade do universo para que o deslocamento se tornasse perceptível [1]. Talvez todos os materiais sejam assim, líquidos que escorrem bem devagar para baixo. Se houvesse tempo, o mundo se reduziria afinal a uma pequena gota esférica, densa e dura ao extremo.

Os primeiros trabalhos tridimensionais de Carlito Carvalhosa, em meados da década de 1990, eram cilindros ocos de cera, que ele deixava murchar enquanto endureciam, de maneira a gerar formas pouco assertivas, cambaleantes, semiderretidas. Às vezes, para que a escultura não se desfizesse por completo, era necessário que Carlito a segurasse com os braços e ficasse abraçado ao cilindro de cera, até que esfriasse o suficiente. Em um catálogo do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, referente a uma exposição de 1995, há uma foto do artista assim, enlaçado à escultura numa posição desconfortável, como se transmitisse à cera, por contato, a condição ereta do corpo humano, e ao mesmo tempo recebesse dela a moleza, a tendência a murchar. De fato, muitos dos trabalhos de Carlito Carvalhosa sugerem uma queda possível. Às vezes estão no ponto de desabar; em outras ocasiões, dão a impressão que deixados a si mesmos continuariam a escorrer para baixo, infinitivamente. O trabalho do artista, então, consiste em interromper essa queda. A questão é quando e como.

Cair, desabar, despencar são verbos intransitivos diretos: pertencem ao reino da necessidade. Já erguer-se, levantar-se, são reflexivos, participam da vontade. Demandam, por isso, que o eu se cinda em uma alma que ordena e um corpo que obedece (contraprova: movimentos descendentes, quando voluntários, também exigem a partícula pronominal: jogar-se, precipitar-se). Por certo, os setenta postes do MAC Ibirapuera caem, mas pode ser também que estejam se erguendo – como, aliás, o próprio artista sugeriu em entrevistas. De fato, podemos imaginá-los em movimento ascensional, ainda que isso demande certo esforço. A escolha é nossa, mas o fato é que não sabemos. Perceptivamente, a obra causa perplexidade: não podemos determinar, de imediato, se são as coisas que pararam de se mexer ou é a nossa visão que engasgou, como um fotograma emperrado no projetor. Certo é que o que estamos vendo é apenas um instante extraído de um movimento contínuo, que cedo ou tarde será retomado.

Assim, o sentido da obra não é determinado tanto pelo ato voluntário, decidido, que se opõe à passividade dos materiais, quanto pela sensação de que se trata apenas de um gesto temporário, depois do qual a natureza deveria retomar seu curso. E, no entanto, paradoxalmente, esse gesto se eterniza, as coisas ficam bloqueadas numa posição incômoda por um tempo indefinido que talvez corresponda ao tempo de nossa presença, como naquela brincadeira infantil em que os jogadores, quando olhados, devem permanecer imóveis. A espera a que o título alude parece ser delas, não nossa.

Certamente, o paradoxo da imobilidade do transitôrio não é próprio apenas do trabalho de Carvalhosa, mas de toda a arte, se não de toda forma. Toda formalização é um ato de soberba, natural é desfazer-se. Mas nas obras de Carvalhosa a questão parece adquirir uma inquietude mais intensa, que a torna central. Não há muitos trabalhos de outros artistas em que fique tão evidente que formalizar é estancar uma matéria que escoa, estabelecer um corte horizontal numa descida lenta, mas impossível de se deter para sempre. O trabalho de Carlito Carvalhosa fala da convivência desconfortável de tempo e eternidade.

Os materiais utilizados predominantemente na década de 1990 já são significativos: cera, gesso, vidro, uma porcelana de um branco escorregadio que a luz literalmente banha, graxa presa por um vidro que impede que deslize. Todos são fluidos que adquirem forma se solidificando, ou que são mantidos “em forma” por agentes externos. Os gessos, em particular, predominantes no final daquela década, mostram sua origem líquida na mansidão de sua superfície, sensível à mínima dobra do molde. Mas em seguida são segmentados por cortes retos, e os segmentos são superpostos fora de esquadro, de maneira que uma parte da base dos blocos fique em balanço. A elegância que poderia caracterizar cada bloco de gesso, quase um drapejamento clássico, é negada por esse jogo de cortes e superposições enviesadas. Leveza das superfícies e peso dos volumes, sólido e líquido convivem no mesmo corpo. O que mais conta, para o raciocínio que estou tentando desenvolver aqui, é a precariedade dos apoios, o afã com que os blocos superiores, por trás de sua aparência quieta, se esforçam para alcançar o chão.

De resto, que essa seja uma questão central para Carlito, fica evidente num trabalho um pouco posterior, Favor não tocar (São Paulo, Centro Maria Antonia, 2004). Aqui, o bloco de gesso já não apóia sobre outros blocos, mas fica preso à meia altura entre os pilares da sala. É o primeiro trabalho, que eu lembre, em que o artista, arquiteto de formação, lida com a estrutura do espaço arquitetônico. De fato, a sala, num prédio antigo e muito remanejado, se caracteriza por pilares dispostos desordenadamente, em número excessivo em relação à área. Por outro lado, uma peça dessas dimensões seria muito pesada para a estrutura do prédio, se apoiada diretamente no chão. Colocado assim, como se tivesse entalado na queda, o bloco parecia exercer (como de fato exercia) uma pressão constante para baixo, ainda mais por sua aparência mole, quase gelatinosa – não havia corte reto horizontal, dessa vez.

A relação com os pilares torna Favor não tocar, evidentemente, parente próximo de Sala de espera. Nos dois casos, os pilares ou colunas estabelecem uma verticalidade abstrata, porque não direcionada. Eles abrem o compasso em que a história corre, mas não são história, no máximo sua moldura. História é tudo aquilo que anda, tropeça, cai ou se ergue entre eles. No entanto, espaço ideal e movimento real, ao entrarem em contato, se contaminam reciprocamente. As colunas são envolvidas no movimento do gesso e das madeiras, mas este é um movimento paralisado, suspenso à atemporalidade das colunas.

Há um quadro de Rafael, a Deposição, que me vem à mente quando penso nessas instalações. Nele, o corpo de Cristo é matéria pesada, carregada num lenço branco que lembra um pouco, em sua curva grave, o gesso de Favor não tocar. Duas personagens o sustentam: uma, muito humana na expressão e no movimento retorcido pelo esforço, tenta superar, de costas, um degrau de pedra; a outra, jovem e firme nas pernas, é a única a quem um vento, imperceptível nos outros, despenteia os cabelos e levanta as vestes. Costuma-se pensar que seja um anjo. Cercado por esse vento que é só dele, participa da história e ao mesmo tempo pertence a outro lugar. Humanizando-se, o anjo diviniza o conjunto, e faz que o quadro inteiro permaneça em balanço entre ideal e real. As colunas do MAC e os pilares da Maria Antonia participam da obra, mas pertencem a outro tempo. (O quadro de Rafael é juvenil: a relação entre os dois mundos ainda tem algo de não resolvido. Mais tarde, nos apartamentos de Júlio II, o artista aprenderá a fazer a transição sem fissuras; mas é a fissura que interessa aqui).

Poemas novos continuam sendo feitos de fragmentos de versos antigos.

Suspensão é o termo médio entre imobilidade e queda. De certo ponto de vista, ela é apenas o ponto inicial da queda. De outro, ela se dá ao carregar um corpo já caído. Em Já estava assim quando cheguei (MAM/RJ, 2006), uma cópia em gesso do Pão de Açúcar é pendurada de cabeça para baixo, por tábuas de madeira e fitas de carga. A relação com a arquitetura, nesse caso, é complexa: suspendendo-se às vigas da cobertura, a instalação segue o partido estrutural do edifício, que é inteiramente pendurado às mesmas vigas; reproduz, invertido, um fragmento da paisagem que se enxerga pelas vidraças, como se estas fossem a lente de uma enorme câmara ótica; articula, em seus materiais, o jogo sutil dos materiais de que a sala é feita: granilite no chão, concreto aparente nas paredes, reboco no teto e nas paredes do mezanino. Talvez tenha sido a relação entre o reboco e o concreto, com suas marcas de tábuas à vista, quem sugeriu a Carlito o contraste entre a grande massa branca, semelhante a uma gota densa que acabou de se desprender do teto, e as madeiras que a sustentam. Ou talvez isso seja apenas a solução mais direta e autêntica de um problema estrutural. Mas é fato que a estrutura de sustentação, aqui, está pela primeira vez à vista e que a madeira aparece – também, se não me engano, pela primeira vez -- como um elemento importante do trabalho do artista.

A madeira é um material ambíguo. Enquanto cresce, é ser vivo. Quando morre, não desaparece: torna-se matéria bruta, como uma pedra. Enquanto viva, tem senso da posição e da direção: as raízes afundam e os galhos sobem, e nunca erram – não há como plantar uma semente ao contrário. Morta, mantém uma densidade e um peso variáveis, mas como enlouquecidos e sem direção, como no caso dos postes de Sala de espera. Instalações de Carlito Carvalhosa posteriores a Já estava assim quando cheguei jogam com os dois aspectos: postes suspensos entre as árvores vivas, no jardim do Museu da Casa Brasileira (Você tem razão, São Paulo, 2009); postes abarrotando as salas neoclássicas do Palácio da Aclamação em Salvador, mas também árvores vivas suspensas no hall de entrada, se alimentando na terra presa às raízes por um saco de juta (Roteiro para visitação, 2010).

A madeira, como o tecido, é fibrosa, não homogênea como o gesso e a cera. Os trabalhos com tecidos de Carlito Carvalhosa (a partir de Apagador, Salvador, Museu de Arte Moderna da Bahia, 2008) são contemporâneos, ou até um pouco anteriores àqueles centrados no uso das madeiras. Diferentemente da madeira morta, no tecido as fibras são solidárias, constituem uma trama. Ao descer, os panos exibem um autocontrole que transforma a queda em caimento.

O pano também veda, é cortina. Substitui o espaço abstrato por outro espaço ainda mais abstrato, porque até a consistência dura das paredes é abolida. É um espaço feito de sopro e de luz. Para que a luz não tenha nada de natural, Carlito coloca lâmpadas fluorescentes atrás dos véus (Faz parte, São Paulo, Galeria Millan e Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 2008; A soma dos dias, São Paulo, Pinacoteca do Estado, 2010; Sum of Days, MoMA, 2011; e outros). Contudo, os panos estão fixados em cima e soltos embaixo: eles também caem, ainda que pertençam mais ao ar que à terra.

As lâmpadas, mesmo quando não são encobertas pelas cortinas (por exemplo, em Melhor Assim, São Paulo, Espaço cultural SOSO+, 2010), não iluminam o espaço, o abolem. Transformam as medidas espaciais em tempos, escansões rítmicas. Diferentemente do que acontece nas esculturas de Dan Flavin, elas não são luz objetivada, mas energia que luta contra a gravidade, apaga as paredes e subleva do chão. Como na instalação da Fundação Eva Klabin (Regra de Dois, Rio de Janeiro, 2011), quando uma parte da casa foi inundada de luz e os móveis foram levantados e apoiados em copos de vidro. O vidro transmitia a luz, mas também denunciava a fragilidade daquela levitação. Abdução extraterrestre da sala burguesa, refinada e pomposa. Quando voltarem ao chão, os móveis não se lembrarão de nada.

O rei da levitação, na arte moderna, foi Calder. Com os mobiles de Calder a utopia de incluir o movimento na forma -- não por procedimentos mecânicos, mas por uma espécie de aprimoramento da natureza dela – chega ao auge. Os corpos exploram seu próprio peso para deixar de ter peso e a gravidade se transforma num sistema de equivalências em que tudo, mesmo trocando de posição, permanece onde está. Não há tal ilusão em Sala de espera. Peso e forma são pólos inconciliáveis entre os quais existimos, e só reconhecendo a distância entre os dois o peso pode se tornar significativo e a forma, expressiva. Ao otimismo pragmático do americano, Carlito Carvalhosa contrapõe certa melancolia portuguesa. Apenas a direção mudou: do horizonte – além do qual, por muitos séculos, não havia nada – para o centro, que é também o fim, da terra -- dessa matéria que continua fluindo e que o artista se limita a segurar por um tempo.

A reflexão introduz um momento de imobilidade no movimento contínuo. A interrupção do fluxo aproxima, numa mesma atitude de surpresa, espectadores e coisas. Por quanto sejam, às vezes, sedutoras, as instalações de Carlito Carvalhosa, diferentemente de muitas instalações recentes, não apresentam nenhuma sugestão lúdica. Não são interação, são pausa. É nesse compasso de espera que o ruído do mundo, como um zumbido, se deixa ouvir de leve.

[1] Retiro essa informação da tese de doutorado de Liliane Benetti, Ângulos de uma caminhada lenta: exercícios de contenção, reiteração e saturação na obra de Bruce Nauman (São Paulo, ECA/USP, 2013), que por sua vez remete a Wallace V. Masuko, Henri Robert Marcel Duchamp: Erre (Dissertação de mestrado, São Paulo, ECA/USP. 2012).
by arteninja