publicada na revista concinnitas, dezembro de 2011
“Transformar a falta de luz da casa Eva Klabin no assunto principal”[1] de Regra de dois, instalação realizada em abril de 2011 no Rio de Janeiro, foi o objetivo do artista paulistano Carlito Carvalhosa.
Viver à noite e dormir durante o dia é uma das características que alimentam a particular biografia da colecionadora Eva Klabin, e na casa em que viveu, na Lagoa, as janelas ainda estão fechadas, como cortinas de ferro cerradas para a realidade. Trata-se de um “espaço em suspensão”, “fora do tempo” e fora da história, como observa o curador, Márcio Doctors.
A curadoria de Doctors sustenta-se, em boa parte, nessa narrativa, e constitui o dado operativo para artistas selecionados ali intervirem desde 2004. Um exercício de confrontação entre os trabalhos e o mundo de Eva Klabin, e de surpreendente persistência no panorama curatorial do Rio, do qual já participaram José Damasceno (2004), Chelpa Ferro (2005), Paulo Vivacqua (2006), Anna Bella Geiger (2006), Rui Chafes (2007), Cláudia Bakker (2007), entre outros.
Vou abordar brevemente o papel do espaço no trabalho de Carvalhosa e na prática da curadoria. Depois aproximar-me da subjetividade que o artista produziu em Regra de dois. Finalmente perceber em que medida a narrativa curatorial participa na ativação dessa subjetividade.
Logo nas primeiras pinturas que expôs no final dos anos 1980,[2] mas principalmente a partir da intervenção de blocos de massa asfáltica em uma área abandonada da Zona Oeste de São Paulo,[3] percebemos que interessa a Carlito Carvalhosa a relação entre o espaço e o ato de construir. Mobilizada pelo artista, a construção é um processo de reordenação do mundo que temos pela frente, é sustentação do caos e, portanto, atividade de diferenciação em face da natureza. Inicialmente através dos blocos asfálticos e prosseguindo pelos gessos (por exemplo, Gilbraltar, 2000, CAPC Bordeaux, Franca), pelas esculturas de porcelana (por exemplo, Carlito Carvalhosa, Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 1997), pelos espelhos (por exemplo Melhor assim, Soso +, São Paulo, 2010) ou pelo som (por exemplo A soma dos dias, Pinacoteca do Estado de São Paulo), etc., percorre seu trabalho um pensamento da escultura[4] como construção, gesto de adição e de subtração ao vazio. O pós-minimalismo americano é, pois, chão fértil para olhar a obra de Carlito Carvalhosa, precisamente na “alternativa erótica ou emotiva” ao minimalismo, como referia a crítica do movimento Lucy Lippard. É possível, então, discernir a linha que leva ao exercício pós-moderno que, a partir dos anos 70, baralha as lições minimalistas e pós-minimalistas, e expande o objeto da escultura para o real em volta, apropriando-se de escalas, significados e materiais cada vez mais diversificados. Consequentemente inclui a memória e a subjetividade do espectador na vivência das obras.
Ainda que em certos trabalhos de Carvalhosa possamos ter experiência semelhante à que Richard Serra mencionava quando se referia aos objetos de Judd − “Judd’s work is to be looked at, first and foremost”−, há um desvio de quem pensa duplamente o lugar, como fato fenomenológico e retiniano. Talvez esteja em causa uma equação entre aspetos físicos, tais como tamanho, escala, luz, temperatura, arquitetura, etc., e aspetos individuais ou coletivos da experiência e da memória de quem observa. Nesse sentido, o bloco de massa asfáltica numa área abandonada de São Paulo ou o conjunto de árvores suspensas no grande vão do Palácio da Aclamação, em Salvador, na Bahia,[5] são demonstrativos dessa dinâmica permanente entre olhar e imaginação, da ordem da expetativa e da elaboração.
O uso do espaço nas instalações de Carvalhosa é, por isso mesmo, ambíguo e vacila permanentemente entre contemplação e experiência, entre distância e aproximação, entre óptico e háptico. As coordenadas definidoras de um lugar são constantemente permutadas em um contínuo fair-play. Como se em simultâneo pudessem coabitar o idealismo da escultura moderna e o campo expandido da escultura, a convivência pacífica entre o paradigma espectador/obra e o paradigma espetador/obra/lugar.
Regra de dois, a instalação na Casa-Museu Klabin, retoma várias questoes que o trabalho de Carlito Carvalhosa há tempo vem colocando.
Sucintamente, trata-se de instalação de materiais ordinários, copos, vidros, néons, árvores, que estabelece um percurso ao longo dos dois pisos da casa, passando pelos espaços comuns e privados. A deambulação relaciona-se nos intervalos desses lugares e faz a experiência acontecer em simultâneo. A deambulação é medida temporal que já se encontra em outros trabalhos, como, por exemplo, Apagador (capela de Nossa Senhora da Conceição, Solar do Unhão, 2007), Faz parte (Galeria Millan, 2008), ou A soma dos dias (Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2010), nos quais o espetador é levado a coordenar a evolução do corpo sob a medida de seu tempo, parecendo isso constituir pretexto para as intervenções de Carlito serem algo mais do que simples objetos dispostos no espaço, mais do que “meros” herdeiros da escultura.
O jogo entre a luz (bem como seus usos ficcionais) e a coleção de objetos artísticos e decorativos de Eva Klabin vai constituir o novo lugar que Carvalhosa concebe, estabelecendo certo método para questionar os efeitos que pretende. Podemos sugerir que desdobra sua instalação em quatro ideias específicas: levitação, superfície, interdição e sonho, que o espetador vai vivenciar ao longo de seu percurso pela casa.
O primeiro espaço em que entramos é a Sala Renascença, onde Regra de dois ganha maior expressão. Carvalhosa dispôs todo o mobiliário desse cômodo sobre copos de vidro de várias dimensoes e formas. A sala ‘levita’ a poucos centímetros do solo, e o chão é imensa luz branca de néon[6] que pisamos. Puro golpe, pura ferida visual que nos cega. Aqui, como no resto da casa, estamos rodeados de objetos da coleção, de várias épocas e diferentes proveniências.
Ainda que a questão do colecionismo seja uma das premissas da curadoria e que possa, aliás, ter interpelado o artista, o que nos “aparece” na instalação (igualmente importante no trabalho de Carvalhosa) é aquilo que Coleridge chamou de “voluntária suspensão da incredulidade” (willing suspension of disbelief). De repente, objetos que sabemos pertencer ao real têm dissolvidas suas propriedades habituais e transmutam-se. Escava-se entre nós e eles um fosso de imponderáveis que ameaca as lógicas familiares. Para produzir esse efeito, Carvalhosa dispôs seus objetos em ordem absolutamente simétrica àquela que a colecionadora Eva Klabin depôs os seus, provocando imprevistos confrontos entre a luz dos vidros corriqueiros e uma pintura de Tintoretto, por exemplo. “Uma ordem simétrica une copos de vidro e objetos existentes na sala. Copos distintos em posições simétricas se tornam iguais pela função, não pela aparência. A ordem como elemento de suspensão de uma coisa a outra: o lugar esperando e dissolvendo os objetos.”[7]
Materiais pobres que se tornam ricos e profanos que viram sagrados, num processo paradoxal cujas formas recusam sistematicamente sentidos culturais preestabelecidos. Como observa o crítico Rodrigo Naves, existe “absoluta falta de empatia” que admite conviverem em seus trabalhos “qualidades plásticas que não deveriam conviver entre si e, que por estarem assim agrupadas, poem a nossa percepção em perigo, já que é praticamente impossível acomodá-las num mesmo objeto”.[8] Tal como as grandes massas de gesso informes (cegas) que conhecemos do artista, a convivência do vidro dos copos com o mobiliário da sala gera “falta de empatia” entre forca e leveza, e, acrescento, manipula e neutraliza em simultâneo.
O segundo momento acontece no espaço em frente à Sala Inglesa, cuja parede principal o artista cobriu com a luz de néon já mencionada, prosseguindo em ganho contínuo para nossa percepção. A luz funciona como ‘superfície’, mas também como matéria negra que engole tudo em redor e dissolve as camadas de história e o nó de temporalidades que ali habita. A parede torna-se avessa a qualquer lógica expositiva e subverte a ideia de um olhar dirigido, o ‘dar a ver’ museal inerente a toda apresentação de objetos.
Ainda no piso térreo, entre a Sala de Jantar e a Sala Chinesa, Carvalhosa ergueu uma ‘barreira’ de luz que impede a passagem entre os dois espaços. Uma barreira física que não podemos atravessar, mas que permite ver além, como em certas instalações suspensas de néon de Dan Flavin, que nos parecem lugares sem espaço, por excesso de luz.
No piso superior e fechando o percurso, Carvalhosa resolve a instalação num sentido que vai da materialidade dos objetos à produção de uma imagem ‘em aberto’, quase cinematográfica. A luz é baixa, soturna, um quase escuro. Diante de nós quatro árvores suspensas no banheiro de Eva Klabin. Eloquente, mas apenas isso. O efeito é desconcertante, mas seu significado é decalcado facilmente, não porque não haja nada a dizer, mas talvez porque a linguagem, nesse caso, não seja prioritária. A instalação opera em nós uma espécie de recuo (epoché) que abre espaço a um estádio não verbal, experiência muito semelhante àquela que Carvalhosa quis proporcionar na estrada de Maragoji (Maceió-Recife), quando registrou algo impossível como um carro sob uma árvore. “Imaginar que é arte, nesse caso, pacifica o nosso entendimento. O que pode ser aquilo?”,[9] ele questiona.
Em que medida Regra de dois responde à curadoria? Talvez, no caso da instalação de Carvalhosa, a narrativa de Klabin tenha servido de pretexto, mas não de premissa.
Há um diálogo que podemos entrever com a narrativa curatorial de Doctors e que se liga à singular história de Eva Klabin, porém a subjetividade da proposta de Carlito Carvalhosa é potencializada, julgo, pela continuidade de seus trabalhos. Toda a sua obra contém a priori a ideia de que o espaço (qualquer espaço) está aberto a um jogo de sobredeterminações no qual artista e espectador manipulam memória, percepções e temporalidades; ou a ideia de que a experiência estética não fala, é afásica, e, contudo, abre a palavra à linguagem. Questoes como a temporalidade, espaço ou estatuto dos objetos já estão no trabalho de Carvalhosa de forma mais radical do que na narrativa da curadoria.
Se, porém, o ponto de partida for o trabalho de Márcio Doctors − e essa já é sua 13a escolha −, vemos que a marca autoral que tem vindo a dar ao Projeto Respiração se reforca em consistente linha de pesquisa assente sobre a noção de ‘devir’ histórico, passado, presente e futuro benjaminianos.
Voltando à curadoria, esse essencial ruído que nos permite experimentar outras narrativas que trazem sentido ao impulso criativo, várias vezes ela assume a crenca na especificidade do espaço e na adequação entre lugar e obra (ou entre lugar e artista). Inevitavelmente a curadoria arriscará quando escolher artistas em vez de projetos, porque os resultados podem escapar às expetativas. Carlito Carvalhosa afirma que “a ideia de fazer uma coisa especialmente para um lugar não existe. As coisas saem sempre do lugar”. O lugar para o artista e o lugar para o curador não são o mesmo lugar.
Rio de Janeiro, 2011
mestre.marta@gmail.com
1 O Globo, 25.4.2011. Segundo Caderno
2 Subdistrito Comercial de Arte, São Paulo.
3 Em rigor, a intervenção de Carvalhosa localizava-se numa fábrica abandonada da Matarazzo, Água Branca, na Zona Oeste de São Paulo. Artecidade – a cidade e as suas histórias, curadoria de Nelson Brissac Peixoto, 1997.
4 Ainda que referências à arquitetura e a arquitetos contemporâneos surjam em textos da crítica, por exemplo, Espelhos graxos, de Paulo Venancio Filho, sobre a mostra Carlito Carvalhosa, no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, São Paulo, 2002.
5 Roteiro para visitação, Programa Ocupas,curadoria Daniel Rangel, Palácio da Aclamação, Salvador, Bahia, 2010.
6 Esse entendimento particular da luz for experimentado na Galeria Soso +, em Melhor assim, São Paulo, 2010.
7 E-mails trocados com Carlito Carvalhosa.
8 Naves, Rodrigo, Óleo sobre água, in Carlito Carvalhosa, São Paulo: Ed. Cosac&Naify, 2000.
9 E-mails trocados com Carlito Carvalhosa.
“Transformar a falta de luz da casa Eva Klabin no assunto principal”[1] de Regra de dois, instalação realizada em abril de 2011 no Rio de Janeiro, foi o objetivo do artista paulistano Carlito Carvalhosa.
Viver à noite e dormir durante o dia é uma das características que alimentam a particular biografia da colecionadora Eva Klabin, e na casa em que viveu, na Lagoa, as janelas ainda estão fechadas, como cortinas de ferro cerradas para a realidade. Trata-se de um “espaço em suspensão”, “fora do tempo” e fora da história, como observa o curador, Márcio Doctors.
A curadoria de Doctors sustenta-se, em boa parte, nessa narrativa, e constitui o dado operativo para artistas selecionados ali intervirem desde 2004. Um exercício de confrontação entre os trabalhos e o mundo de Eva Klabin, e de surpreendente persistência no panorama curatorial do Rio, do qual já participaram José Damasceno (2004), Chelpa Ferro (2005), Paulo Vivacqua (2006), Anna Bella Geiger (2006), Rui Chafes (2007), Cláudia Bakker (2007), entre outros.
Vou abordar brevemente o papel do espaço no trabalho de Carvalhosa e na prática da curadoria. Depois aproximar-me da subjetividade que o artista produziu em Regra de dois. Finalmente perceber em que medida a narrativa curatorial participa na ativação dessa subjetividade.
Logo nas primeiras pinturas que expôs no final dos anos 1980,[2] mas principalmente a partir da intervenção de blocos de massa asfáltica em uma área abandonada da Zona Oeste de São Paulo,[3] percebemos que interessa a Carlito Carvalhosa a relação entre o espaço e o ato de construir. Mobilizada pelo artista, a construção é um processo de reordenação do mundo que temos pela frente, é sustentação do caos e, portanto, atividade de diferenciação em face da natureza. Inicialmente através dos blocos asfálticos e prosseguindo pelos gessos (por exemplo, Gilbraltar, 2000, CAPC Bordeaux, Franca), pelas esculturas de porcelana (por exemplo, Carlito Carvalhosa, Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 1997), pelos espelhos (por exemplo Melhor assim, Soso +, São Paulo, 2010) ou pelo som (por exemplo A soma dos dias, Pinacoteca do Estado de São Paulo), etc., percorre seu trabalho um pensamento da escultura[4] como construção, gesto de adição e de subtração ao vazio. O pós-minimalismo americano é, pois, chão fértil para olhar a obra de Carlito Carvalhosa, precisamente na “alternativa erótica ou emotiva” ao minimalismo, como referia a crítica do movimento Lucy Lippard. É possível, então, discernir a linha que leva ao exercício pós-moderno que, a partir dos anos 70, baralha as lições minimalistas e pós-minimalistas, e expande o objeto da escultura para o real em volta, apropriando-se de escalas, significados e materiais cada vez mais diversificados. Consequentemente inclui a memória e a subjetividade do espectador na vivência das obras.
Ainda que em certos trabalhos de Carvalhosa possamos ter experiência semelhante à que Richard Serra mencionava quando se referia aos objetos de Judd − “Judd’s work is to be looked at, first and foremost”−, há um desvio de quem pensa duplamente o lugar, como fato fenomenológico e retiniano. Talvez esteja em causa uma equação entre aspetos físicos, tais como tamanho, escala, luz, temperatura, arquitetura, etc., e aspetos individuais ou coletivos da experiência e da memória de quem observa. Nesse sentido, o bloco de massa asfáltica numa área abandonada de São Paulo ou o conjunto de árvores suspensas no grande vão do Palácio da Aclamação, em Salvador, na Bahia,[5] são demonstrativos dessa dinâmica permanente entre olhar e imaginação, da ordem da expetativa e da elaboração.
O uso do espaço nas instalações de Carvalhosa é, por isso mesmo, ambíguo e vacila permanentemente entre contemplação e experiência, entre distância e aproximação, entre óptico e háptico. As coordenadas definidoras de um lugar são constantemente permutadas em um contínuo fair-play. Como se em simultâneo pudessem coabitar o idealismo da escultura moderna e o campo expandido da escultura, a convivência pacífica entre o paradigma espectador/obra e o paradigma espetador/obra/lugar.
Regra de dois, a instalação na Casa-Museu Klabin, retoma várias questoes que o trabalho de Carlito Carvalhosa há tempo vem colocando.
Sucintamente, trata-se de instalação de materiais ordinários, copos, vidros, néons, árvores, que estabelece um percurso ao longo dos dois pisos da casa, passando pelos espaços comuns e privados. A deambulação relaciona-se nos intervalos desses lugares e faz a experiência acontecer em simultâneo. A deambulação é medida temporal que já se encontra em outros trabalhos, como, por exemplo, Apagador (capela de Nossa Senhora da Conceição, Solar do Unhão, 2007), Faz parte (Galeria Millan, 2008), ou A soma dos dias (Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2010), nos quais o espetador é levado a coordenar a evolução do corpo sob a medida de seu tempo, parecendo isso constituir pretexto para as intervenções de Carlito serem algo mais do que simples objetos dispostos no espaço, mais do que “meros” herdeiros da escultura.
O jogo entre a luz (bem como seus usos ficcionais) e a coleção de objetos artísticos e decorativos de Eva Klabin vai constituir o novo lugar que Carvalhosa concebe, estabelecendo certo método para questionar os efeitos que pretende. Podemos sugerir que desdobra sua instalação em quatro ideias específicas: levitação, superfície, interdição e sonho, que o espetador vai vivenciar ao longo de seu percurso pela casa.
O primeiro espaço em que entramos é a Sala Renascença, onde Regra de dois ganha maior expressão. Carvalhosa dispôs todo o mobiliário desse cômodo sobre copos de vidro de várias dimensoes e formas. A sala ‘levita’ a poucos centímetros do solo, e o chão é imensa luz branca de néon[6] que pisamos. Puro golpe, pura ferida visual que nos cega. Aqui, como no resto da casa, estamos rodeados de objetos da coleção, de várias épocas e diferentes proveniências.
Ainda que a questão do colecionismo seja uma das premissas da curadoria e que possa, aliás, ter interpelado o artista, o que nos “aparece” na instalação (igualmente importante no trabalho de Carvalhosa) é aquilo que Coleridge chamou de “voluntária suspensão da incredulidade” (willing suspension of disbelief). De repente, objetos que sabemos pertencer ao real têm dissolvidas suas propriedades habituais e transmutam-se. Escava-se entre nós e eles um fosso de imponderáveis que ameaca as lógicas familiares. Para produzir esse efeito, Carvalhosa dispôs seus objetos em ordem absolutamente simétrica àquela que a colecionadora Eva Klabin depôs os seus, provocando imprevistos confrontos entre a luz dos vidros corriqueiros e uma pintura de Tintoretto, por exemplo. “Uma ordem simétrica une copos de vidro e objetos existentes na sala. Copos distintos em posições simétricas se tornam iguais pela função, não pela aparência. A ordem como elemento de suspensão de uma coisa a outra: o lugar esperando e dissolvendo os objetos.”[7]
Materiais pobres que se tornam ricos e profanos que viram sagrados, num processo paradoxal cujas formas recusam sistematicamente sentidos culturais preestabelecidos. Como observa o crítico Rodrigo Naves, existe “absoluta falta de empatia” que admite conviverem em seus trabalhos “qualidades plásticas que não deveriam conviver entre si e, que por estarem assim agrupadas, poem a nossa percepção em perigo, já que é praticamente impossível acomodá-las num mesmo objeto”.[8] Tal como as grandes massas de gesso informes (cegas) que conhecemos do artista, a convivência do vidro dos copos com o mobiliário da sala gera “falta de empatia” entre forca e leveza, e, acrescento, manipula e neutraliza em simultâneo.
O segundo momento acontece no espaço em frente à Sala Inglesa, cuja parede principal o artista cobriu com a luz de néon já mencionada, prosseguindo em ganho contínuo para nossa percepção. A luz funciona como ‘superfície’, mas também como matéria negra que engole tudo em redor e dissolve as camadas de história e o nó de temporalidades que ali habita. A parede torna-se avessa a qualquer lógica expositiva e subverte a ideia de um olhar dirigido, o ‘dar a ver’ museal inerente a toda apresentação de objetos.
Ainda no piso térreo, entre a Sala de Jantar e a Sala Chinesa, Carvalhosa ergueu uma ‘barreira’ de luz que impede a passagem entre os dois espaços. Uma barreira física que não podemos atravessar, mas que permite ver além, como em certas instalações suspensas de néon de Dan Flavin, que nos parecem lugares sem espaço, por excesso de luz.
No piso superior e fechando o percurso, Carvalhosa resolve a instalação num sentido que vai da materialidade dos objetos à produção de uma imagem ‘em aberto’, quase cinematográfica. A luz é baixa, soturna, um quase escuro. Diante de nós quatro árvores suspensas no banheiro de Eva Klabin. Eloquente, mas apenas isso. O efeito é desconcertante, mas seu significado é decalcado facilmente, não porque não haja nada a dizer, mas talvez porque a linguagem, nesse caso, não seja prioritária. A instalação opera em nós uma espécie de recuo (epoché) que abre espaço a um estádio não verbal, experiência muito semelhante àquela que Carvalhosa quis proporcionar na estrada de Maragoji (Maceió-Recife), quando registrou algo impossível como um carro sob uma árvore. “Imaginar que é arte, nesse caso, pacifica o nosso entendimento. O que pode ser aquilo?”,[9] ele questiona.
Em que medida Regra de dois responde à curadoria? Talvez, no caso da instalação de Carvalhosa, a narrativa de Klabin tenha servido de pretexto, mas não de premissa.
Há um diálogo que podemos entrever com a narrativa curatorial de Doctors e que se liga à singular história de Eva Klabin, porém a subjetividade da proposta de Carlito Carvalhosa é potencializada, julgo, pela continuidade de seus trabalhos. Toda a sua obra contém a priori a ideia de que o espaço (qualquer espaço) está aberto a um jogo de sobredeterminações no qual artista e espectador manipulam memória, percepções e temporalidades; ou a ideia de que a experiência estética não fala, é afásica, e, contudo, abre a palavra à linguagem. Questoes como a temporalidade, espaço ou estatuto dos objetos já estão no trabalho de Carvalhosa de forma mais radical do que na narrativa da curadoria.
Se, porém, o ponto de partida for o trabalho de Márcio Doctors − e essa já é sua 13a escolha −, vemos que a marca autoral que tem vindo a dar ao Projeto Respiração se reforca em consistente linha de pesquisa assente sobre a noção de ‘devir’ histórico, passado, presente e futuro benjaminianos.
Voltando à curadoria, esse essencial ruído que nos permite experimentar outras narrativas que trazem sentido ao impulso criativo, várias vezes ela assume a crenca na especificidade do espaço e na adequação entre lugar e obra (ou entre lugar e artista). Inevitavelmente a curadoria arriscará quando escolher artistas em vez de projetos, porque os resultados podem escapar às expetativas. Carlito Carvalhosa afirma que “a ideia de fazer uma coisa especialmente para um lugar não existe. As coisas saem sempre do lugar”. O lugar para o artista e o lugar para o curador não são o mesmo lugar.
Rio de Janeiro, 2011
mestre.marta@gmail.com
1 O Globo, 25.4.2011. Segundo Caderno
2 Subdistrito Comercial de Arte, São Paulo.
3 Em rigor, a intervenção de Carvalhosa localizava-se numa fábrica abandonada da Matarazzo, Água Branca, na Zona Oeste de São Paulo. Artecidade – a cidade e as suas histórias, curadoria de Nelson Brissac Peixoto, 1997.
4 Ainda que referências à arquitetura e a arquitetos contemporâneos surjam em textos da crítica, por exemplo, Espelhos graxos, de Paulo Venancio Filho, sobre a mostra Carlito Carvalhosa, no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, São Paulo, 2002.
5 Roteiro para visitação, Programa Ocupas,curadoria Daniel Rangel, Palácio da Aclamação, Salvador, Bahia, 2010.
6 Esse entendimento particular da luz for experimentado na Galeria Soso +, em Melhor assim, São Paulo, 2010.
7 E-mails trocados com Carlito Carvalhosa.
8 Naves, Rodrigo, Óleo sobre água, in Carlito Carvalhosa, São Paulo: Ed. Cosac&Naify, 2000.
9 E-mails trocados com Carlito Carvalhosa.