Eu vi
Faz parte me tocou. Assim que saí, passei uma mensagem de texto ao Carlito dividindo minha alegria. Uma mensagem por celular, cheia de letras trocadas e sem conexão entre os pensamentos. Ele me pediu um texto dessa maneira: chegar na calçada em frente à galeria, na rua Fradique Coutinho, ainda meio zonza e dizer: olha, isso é maravilhoso, obrigada.
SALAS
O que vi ao entrar foram salas retangulares feitas de pano branco e translúcido. Entrei em lugares com dimensões e limites definidos, com ângulos retos, cantos e, certamente, sólido. As salas não eram úteros, nem navios ou aviões, eram salas.
MÓBILES DE CÉU
O balançar dos panos dava mobilidade às salas, me veio a expressão móbiles de céu. Não móbiles no céu, porque eram pedaços de céu o que vi se mexer. Parada no chão, eu estava dentro da sala que voava, da mesma forma quando estamos dentro de um móbile do Calder ou nos pés do Fred Astaire. Só que a sala-móbile não é composta de partes que se equilibram no movimento, ela é feita de uma parte só, e por isso é curioso que se componha e se descomponha, e que sendo uma só não seja o todo. É uma parte de um todo que não se sabe o tamanho e nem o que é. Talvez por isso tenha me vindo a expressão móbiles de céu e não móbile no céu.
Compõem-se e descompõem-se não só porque o vento cria novas formas da sala, é o próprio ar quem se compõe e se descompõe.
VENTO
O vento embarriga e faz o pano de ângulos retos e sem pregas dançar. É estranho porque o pano não é uma cortina e não está na frente de uma janela, ele está amarrado em uma forma retangular. Não tem pregas, dobras, meneios, mas se deixa preguear, uma parede-saia, uma estrutura lânguida.
Ando pelo corredor apertado entre a parede e o pano, e o vento criado por meus passos abre o caminho, descerra com delicadeza o espaço entre o pano e a parede. Brinco com o braço, levanto, movimento, o pano acompanha a dança sem encostar-se em minha pele. Eu desloco o ar, a existência de ar entre mim e as coisas nunca foi tão nítida, espanto primário com o sentimento de uma segunda pele entre mim e o mundo. Penso nos judeus atravessando o Mar Vermelho. E imagino lá também o chão firme e, na frente, a massa de mar que depende da vontade divina para continuar a abrir-se. Aqui em São Paulo, o pano se abre por obra do meu vento e abre o meu caminho para mais pano e mais pano, para lugar algum. Se a minha vontade acaba, paro, o vento reflui, e o pano vem sobre mim.
MAR
Pensei, por que céu e não mar? Quer dizer, a sensação do que balança é a sensação de quando estamos em um navio. Foi céu porque não balancei, continuei a ser eu em terra firme o tempo todo. Nada aqui dentro me obriga para fora de mim, as salas não me constrangem a nada. Nada me veda a inteligência e os sentidos, a não ser o maravilhamento e a falta de resposta que é da natureza da arte. Se sinto frio, solidão ou se voo dentro das salas de “Faz Parte”, sou eu que o faço, as salas me doam estas possibilidades, não me arrancam de mim.
NADA
O nada é um elemento relevante na sala. Não sou capaz de dizer outra coisa sobre ele. A não ser que existe e é importante.
DUPLO, CENA E CENÁRIO
Quando ando por uma rua e vejo um buraco entre dois prédios criado pela demolição de uma casa, penso que não me lembro como era aquela casa, que eu a perdi, que nem na minha memória ela ficará. Prometo-me prestar mais atenção nas casas e prédios das ruas de São Paulo por onde ando todos os dias, sei que não o farei, o sentimento de morte não tem alívio. Eu vou continuar a perder, sempre.
Vem-me à cabeça a cena de um homem de paletó cinza e um buquê de flores nas mãos entrando no camarim de uma atriz, ele vê a silhueta da mulher atrás do pano rosa de um biombo e parte de seu braço branco e bonito aparece dependurando uma peça de roupa íntima sobre o biombo.
Aqui nestas salas os panos interferem na nossa visão de paredes nuas.
O lado de fora é apertado, dentro é amplo. Quando vistos de fora, os panos protegem o vazio. Quando vistos de dentro, os panos lembram cortinas fechadas que antecedem o espetáculo. Por trás delas, haverá o mundo, um mundo de coisas, ou um filme, a cortina na frente de uma tela ainda apagada.
Dentro e fora há vento, leveza, luz e movimento. O pano branco que delimita o que é dentro e o que é fora é translúcido, nosso olhar não consegue atravessá-lo. Dentro e fora são claustrofóbicos. Fora é apertado e não vemos aonde vai dar. Dentro não tem janelas, não tem nada, tudo é reto e contínuo, sem quebras ou portas.
O som reforça o sentimento de duplicidade que, junto com o vazio e a cena, são o que existe. É uma sala, não aquela sala. O som é da rua, não daquela rua, naquele momento. A rua e a sala anteriores à exposição continuam a existir, na verdade nada é virtual, os dois sons e as duas salas coexistem. Uma existência interfere na nossa percepção da outra existência.
Não se trata de imagem nem de representação, o pano não simula uma parede, ele é uma parede que esconde outra parede nua.
As paredes e o teto de pano reconstroem o lugar, mas de dentro para fora. Não há engano, truque ou ilusão. Parece que há. Existe aqui alguma coisa que não é.
A invenção de Morel, romance do argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999), conta a história de um sujeito que vai dar sozinho em uma ilha. Lá existe uma casa abandonada, na piscina, água apodrecida, canteiros invadidos por mato. Há uma mulher linda que toda tarde passa por cima de um canteiro, sem notar as flores, e senta-se em uma pedra sobre a colina. Há também jovens divertindo-se em volta da piscina de águas claras. Morel, um fugitivo, teme mostrar-se; escondido, ele refaz o canteiro ao lado da pedra sobre a colina. A moça novamente passa sobre as flores e senta-se pensativa na pedra. Morel, no final, descobre que a moça e os jovens e a água limpa da piscina são a reprodução de dias felizes acontecidos anos atrás. Um dos jovens descobriu uma maneira de imortalizar-se com seus amigos; dependendo dos ciclos da maré, um mecanismo é ativado, e as pessoas e os dias já findos voltam a acontecer sobrepostos ao mato e ao abandono do tempo presente.
A exposição “Faz Parte” tem esta sobreposição de duas existências que parecem ser de tempos e até de lugares distintos, que se realizam no mesmo lugar e ao mesmo tempo. Pois mesmo o ruído sendo uma gravação do que já aconteceu, ao ser reproduzido, volta a ser ruído junto com o ruído presente na rua. Ou seja, as salas e os sons existem e são reproduções, duplicam e modificam, e reforçam o que conhecíamos: o som das ruas, o espaço das salas. As paredes como telas brancas à espera de um filme são as paredes de uma galeria sem quadros.
Faz parte me tocou. Assim que saí, passei uma mensagem de texto ao Carlito dividindo minha alegria. Uma mensagem por celular, cheia de letras trocadas e sem conexão entre os pensamentos. Ele me pediu um texto dessa maneira: chegar na calçada em frente à galeria, na rua Fradique Coutinho, ainda meio zonza e dizer: olha, isso é maravilhoso, obrigada.
SALAS
O que vi ao entrar foram salas retangulares feitas de pano branco e translúcido. Entrei em lugares com dimensões e limites definidos, com ângulos retos, cantos e, certamente, sólido. As salas não eram úteros, nem navios ou aviões, eram salas.
MÓBILES DE CÉU
O balançar dos panos dava mobilidade às salas, me veio a expressão móbiles de céu. Não móbiles no céu, porque eram pedaços de céu o que vi se mexer. Parada no chão, eu estava dentro da sala que voava, da mesma forma quando estamos dentro de um móbile do Calder ou nos pés do Fred Astaire. Só que a sala-móbile não é composta de partes que se equilibram no movimento, ela é feita de uma parte só, e por isso é curioso que se componha e se descomponha, e que sendo uma só não seja o todo. É uma parte de um todo que não se sabe o tamanho e nem o que é. Talvez por isso tenha me vindo a expressão móbiles de céu e não móbile no céu.
Compõem-se e descompõem-se não só porque o vento cria novas formas da sala, é o próprio ar quem se compõe e se descompõe.
VENTO
O vento embarriga e faz o pano de ângulos retos e sem pregas dançar. É estranho porque o pano não é uma cortina e não está na frente de uma janela, ele está amarrado em uma forma retangular. Não tem pregas, dobras, meneios, mas se deixa preguear, uma parede-saia, uma estrutura lânguida.
Ando pelo corredor apertado entre a parede e o pano, e o vento criado por meus passos abre o caminho, descerra com delicadeza o espaço entre o pano e a parede. Brinco com o braço, levanto, movimento, o pano acompanha a dança sem encostar-se em minha pele. Eu desloco o ar, a existência de ar entre mim e as coisas nunca foi tão nítida, espanto primário com o sentimento de uma segunda pele entre mim e o mundo. Penso nos judeus atravessando o Mar Vermelho. E imagino lá também o chão firme e, na frente, a massa de mar que depende da vontade divina para continuar a abrir-se. Aqui em São Paulo, o pano se abre por obra do meu vento e abre o meu caminho para mais pano e mais pano, para lugar algum. Se a minha vontade acaba, paro, o vento reflui, e o pano vem sobre mim.
MAR
Pensei, por que céu e não mar? Quer dizer, a sensação do que balança é a sensação de quando estamos em um navio. Foi céu porque não balancei, continuei a ser eu em terra firme o tempo todo. Nada aqui dentro me obriga para fora de mim, as salas não me constrangem a nada. Nada me veda a inteligência e os sentidos, a não ser o maravilhamento e a falta de resposta que é da natureza da arte. Se sinto frio, solidão ou se voo dentro das salas de “Faz Parte”, sou eu que o faço, as salas me doam estas possibilidades, não me arrancam de mim.
NADA
O nada é um elemento relevante na sala. Não sou capaz de dizer outra coisa sobre ele. A não ser que existe e é importante.
DUPLO, CENA E CENÁRIO
Quando ando por uma rua e vejo um buraco entre dois prédios criado pela demolição de uma casa, penso que não me lembro como era aquela casa, que eu a perdi, que nem na minha memória ela ficará. Prometo-me prestar mais atenção nas casas e prédios das ruas de São Paulo por onde ando todos os dias, sei que não o farei, o sentimento de morte não tem alívio. Eu vou continuar a perder, sempre.
Vem-me à cabeça a cena de um homem de paletó cinza e um buquê de flores nas mãos entrando no camarim de uma atriz, ele vê a silhueta da mulher atrás do pano rosa de um biombo e parte de seu braço branco e bonito aparece dependurando uma peça de roupa íntima sobre o biombo.
Aqui nestas salas os panos interferem na nossa visão de paredes nuas.
O lado de fora é apertado, dentro é amplo. Quando vistos de fora, os panos protegem o vazio. Quando vistos de dentro, os panos lembram cortinas fechadas que antecedem o espetáculo. Por trás delas, haverá o mundo, um mundo de coisas, ou um filme, a cortina na frente de uma tela ainda apagada.
Dentro e fora há vento, leveza, luz e movimento. O pano branco que delimita o que é dentro e o que é fora é translúcido, nosso olhar não consegue atravessá-lo. Dentro e fora são claustrofóbicos. Fora é apertado e não vemos aonde vai dar. Dentro não tem janelas, não tem nada, tudo é reto e contínuo, sem quebras ou portas.
O som reforça o sentimento de duplicidade que, junto com o vazio e a cena, são o que existe. É uma sala, não aquela sala. O som é da rua, não daquela rua, naquele momento. A rua e a sala anteriores à exposição continuam a existir, na verdade nada é virtual, os dois sons e as duas salas coexistem. Uma existência interfere na nossa percepção da outra existência.
Não se trata de imagem nem de representação, o pano não simula uma parede, ele é uma parede que esconde outra parede nua.
As paredes e o teto de pano reconstroem o lugar, mas de dentro para fora. Não há engano, truque ou ilusão. Parece que há. Existe aqui alguma coisa que não é.
A invenção de Morel, romance do argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999), conta a história de um sujeito que vai dar sozinho em uma ilha. Lá existe uma casa abandonada, na piscina, água apodrecida, canteiros invadidos por mato. Há uma mulher linda que toda tarde passa por cima de um canteiro, sem notar as flores, e senta-se em uma pedra sobre a colina. Há também jovens divertindo-se em volta da piscina de águas claras. Morel, um fugitivo, teme mostrar-se; escondido, ele refaz o canteiro ao lado da pedra sobre a colina. A moça novamente passa sobre as flores e senta-se pensativa na pedra. Morel, no final, descobre que a moça e os jovens e a água limpa da piscina são a reprodução de dias felizes acontecidos anos atrás. Um dos jovens descobriu uma maneira de imortalizar-se com seus amigos; dependendo dos ciclos da maré, um mecanismo é ativado, e as pessoas e os dias já findos voltam a acontecer sobrepostos ao mato e ao abandono do tempo presente.
A exposição “Faz Parte” tem esta sobreposição de duas existências que parecem ser de tempos e até de lugares distintos, que se realizam no mesmo lugar e ao mesmo tempo. Pois mesmo o ruído sendo uma gravação do que já aconteceu, ao ser reproduzido, volta a ser ruído junto com o ruído presente na rua. Ou seja, as salas e os sons existem e são reproduções, duplicam e modificam, e reforçam o que conhecíamos: o som das ruas, o espaço das salas. As paredes como telas brancas à espera de um filme são as paredes de uma galeria sem quadros.