Os primeiros abrigos humanos, pelo que se supõe e pelo que se sabe, foram grutas de pedra, cavas naturais usadas por pessoas ou grupos maiores para se proteger das intempéries. Considera-se que os primeiros materiais usados pelo homem na construção dos seus próprios abrigos, depois disso, foram a pedra e a madeira. A pedra, formando sólidas paredes de alvenaria por empilhamento, e os troncos de madeira, espaçados entre si, para suspender coberturas de palha. As colunas gregas, feitas de mármore, já muito tempo depois, homenageiam essa origem rústica e natural da arquitetura, esculpindo na pedra – em particular nos capitéis coríntios – as folhas que um dia coroaram as colunas de madeira, como restos não desbastados da própria árvore nos troncos daqueles edifícios primitivos tal como se imaginou. A arte, portanto, uma vez ultrapassadas as restrições técnicas, codifica com “graça” toda essa genealogia histórica, fazendo a ponte simbólica entre natureza e cultura.
Mas porque aludir a essa questão em um texto sobre a obra de Carlito Carvalhosa? Pois me parece que uma das questões cruciais do seu trabalho reside no questionamento dessa passagem simbólica, desfazendo sua linearidade evolutiva em direção a uma circularidade mais horizontal. Daí a aparição, dentro de ambientes expositivos, de toras de madeira desagastadas pelo tempo, e marcadas por tinta, ou numeradas. Essas toras, que foram troncos, já foram também postes de rua, e reaparecem agora como obras de arte, na forma de intrusos elementos que obstruem as salas, dificultando a passagem das pessoas. Elementos tão intrusos que chegam a romper as paredes, atravessando-as. Essa floresta de madeira, no entanto, está muito longe de outras referências artísticas brasileiras mais expressionistas, como em Frans Krajcberg ou Henrique Oliveira, tomando dois exemplos de gerações distantes. No caso de Carlito, não me parece haver nem a evolução da natureza à cultura, como no caso paradigmático das colunas gregas, nem tampouco a volta expressionista da presença natural, aludindo a um estado de possível retorno, ainda que alegórico. Trata-se, antes de tudo, de uma passagem silenciosa e circular, em que as coisas se transmutam sem perder o nome: madeira.
Como explica Vilém Flusser, a palavra latina “matéria” resulta da tentativa dos romanos de traduzir o termo grego hylé, que originalmente significa madeira. Mas não a madeira em sentido genérico, e sim aquela que se encontrava concretamente estocada nas oficina dos carpinteiros, designando algo amorfo por natureza, em oposição ao conceito de forma (morphé). Hylé é, portanto, para os gregos, o mundo amorfo dos fenômenos naturais, o mundo material, atrás do qual se encontram ocultas as formas eternas. A matéria é o estofo, o recheio perecível da forma indestrutível, pois aquela madeira acabará necessariamente um dia, ainda que a ideia de mesa, ou de cadeira, por outro lado, certamente não. Voltando aos trabalhos de Carlito, o que parece haver, ao contrário, é o círculo vicioso da matéria, que se conserva, apesar da vulnerabilidade da forma que a informa (tronco, poste, obra de arte etc). Apropriação, uso, descarte, reciclagem. Exauridas as várias formas de existência prática daqueles troncos de madeira, eles reaparecem como um trabalho de arte em que a floresta mudou de sentido, deitando-se horizontalmente, e inclinando-se na forma de diagonais, muitas vezes em contraposição à verticalidade dos pilares do edifício (também cilíndricos porém brancos), como no caso da exposição "Sala de espera" no Museu de Arte Contemporânea da USP em 2013. No caminho da explosão do suporte e da espacialização ambiental das obras de arte ocorridos nos últimos 50 anos, é possível ver essas estranhas florestas de Carlito Carvalhosa como diálogos com os Sarrafos de Mira Schendel. Pois não seriam esses troncos-postes reclinados, que atravessam paredes e se equilibram de maneira instável, como que prolongamentos em escala ambiental daquelas ripas de madeira que saltam de dentro de telas brancas para nelas afundarem novamente?
Talvez uma das maiores constantes nos últimos trabalhos de Carlito, bastante presente nessa mostra, é a alteração da posição normal das coisas. Troncos se reclinam, luminárias descem para o chão ou para as paredes, e copos e taças se grudam também ao chão ou às paredes. Quer dizer, dá-se um embaralhamento entre as direções vertical e horizontal, o que corresponde, em certa medida, à dissolução crescente que experimentamos entre arte e vida. Desde que Robert Rauschenberg, em 1955, besuntou sua cama de tinta, junto com colcha e travesseiro, e a levantou para a posição vertical – a posição contemplativa da arte, abandonando a horizontalidade das ações cotidianas: dormir, sentar, apoiar objetos sobre a mesa –, encostando-a na parede, essa questão se tornou central para a arte, incorporando de forma estrutural o espectador no trabalho. Contudo, há nesses trabalhos de Carlito algo de surrealista (escheriano ou magrittiano), no modo como teto, parede e piso se contaminam reciprocamente, e como objetos de uso cotidiano, tais como copos, vão parar em outros lugares sem perder as suas identidades reconhecíveis.
Aliás, essa insistência na conservação da identidade das coisas é justamente algo que distingue fortemente o trabalho atual de Carlito do expressionismo matérico e gestual que marcou a produção do grupo Casa 7, do qual ele fazia parte, no final dos anos 1980 e início dos 90. Nos trabalhos que faz há pelo menos mais de dez anos, Carlito Carvalhosa prefere conservar, através de uma certa literalidade, a identidade externa dos objetos. Daí a presença de um marcado pudor expressivo em seus trabalhos, visível no próprio título dessa exposição, precaução de contato.
Na instalação “Regra de dois” (2011), feita na Fundação Eva Klabin, no Rio de Janeiro, móveis de madeira escura, pesada e altamente adornada, pré-existentes naqueles ambientes que foram domésticos, são levantados do chão por copos e taças de vidro que passam a apoiá-los de maneira vertiginosamente instável. Mal comparando, é como se um edifício se apoiasse não sobre pilares – os equivalentes aos pés dos móveis –, mas sobre frágeis paredes ou colunas de vidro, em um claro paradoxo tectônico. Carlito, ainda nessa instalação, reforça o sentido de suspensão etérea desses móveis instalando linhas de lâmpadas fluorescente no chão, criando assim um halo frio e imaterial que parece eliminar o próprio chão, sobrando apenas cadeiras e outros móveis baixos, além de copos, soltos no espaço. De fato, a ideia de contato ali se reduz a uma dimensão mínima, enquanto que os objetos mantêm intacta a sua integridade formal.
Também nas pinturas essa mesma questão se manifesta, ainda que de outra forma. Ali, a tinta óleo escorrega levemente sobre as placas de alumínio espelhado em um contato aversivo, que não se sedimenta. Vazados em negativo, os desenhos são aberturas refletivas luminosas sobre essas massas de cor azul. A precaução de contato, aqui, é também diminuição de vínculos, alusão a um mundo no qual as coisas (e pessoas) não se colam mais umas às outras, apenas escorregam e se refletem mutuamente. Um mundo em que o chão virou parede, em que a parede que virou teto, e assim por diante. Um mundo, portanto, onde as coisas escorregam e escapam dos seus lugares habituais, trocando de posição, esquivando-se constantemente.
Mas porque aludir a essa questão em um texto sobre a obra de Carlito Carvalhosa? Pois me parece que uma das questões cruciais do seu trabalho reside no questionamento dessa passagem simbólica, desfazendo sua linearidade evolutiva em direção a uma circularidade mais horizontal. Daí a aparição, dentro de ambientes expositivos, de toras de madeira desagastadas pelo tempo, e marcadas por tinta, ou numeradas. Essas toras, que foram troncos, já foram também postes de rua, e reaparecem agora como obras de arte, na forma de intrusos elementos que obstruem as salas, dificultando a passagem das pessoas. Elementos tão intrusos que chegam a romper as paredes, atravessando-as. Essa floresta de madeira, no entanto, está muito longe de outras referências artísticas brasileiras mais expressionistas, como em Frans Krajcberg ou Henrique Oliveira, tomando dois exemplos de gerações distantes. No caso de Carlito, não me parece haver nem a evolução da natureza à cultura, como no caso paradigmático das colunas gregas, nem tampouco a volta expressionista da presença natural, aludindo a um estado de possível retorno, ainda que alegórico. Trata-se, antes de tudo, de uma passagem silenciosa e circular, em que as coisas se transmutam sem perder o nome: madeira.
Como explica Vilém Flusser, a palavra latina “matéria” resulta da tentativa dos romanos de traduzir o termo grego hylé, que originalmente significa madeira. Mas não a madeira em sentido genérico, e sim aquela que se encontrava concretamente estocada nas oficina dos carpinteiros, designando algo amorfo por natureza, em oposição ao conceito de forma (morphé). Hylé é, portanto, para os gregos, o mundo amorfo dos fenômenos naturais, o mundo material, atrás do qual se encontram ocultas as formas eternas. A matéria é o estofo, o recheio perecível da forma indestrutível, pois aquela madeira acabará necessariamente um dia, ainda que a ideia de mesa, ou de cadeira, por outro lado, certamente não. Voltando aos trabalhos de Carlito, o que parece haver, ao contrário, é o círculo vicioso da matéria, que se conserva, apesar da vulnerabilidade da forma que a informa (tronco, poste, obra de arte etc). Apropriação, uso, descarte, reciclagem. Exauridas as várias formas de existência prática daqueles troncos de madeira, eles reaparecem como um trabalho de arte em que a floresta mudou de sentido, deitando-se horizontalmente, e inclinando-se na forma de diagonais, muitas vezes em contraposição à verticalidade dos pilares do edifício (também cilíndricos porém brancos), como no caso da exposição "Sala de espera" no Museu de Arte Contemporânea da USP em 2013. No caminho da explosão do suporte e da espacialização ambiental das obras de arte ocorridos nos últimos 50 anos, é possível ver essas estranhas florestas de Carlito Carvalhosa como diálogos com os Sarrafos de Mira Schendel. Pois não seriam esses troncos-postes reclinados, que atravessam paredes e se equilibram de maneira instável, como que prolongamentos em escala ambiental daquelas ripas de madeira que saltam de dentro de telas brancas para nelas afundarem novamente?
Talvez uma das maiores constantes nos últimos trabalhos de Carlito, bastante presente nessa mostra, é a alteração da posição normal das coisas. Troncos se reclinam, luminárias descem para o chão ou para as paredes, e copos e taças se grudam também ao chão ou às paredes. Quer dizer, dá-se um embaralhamento entre as direções vertical e horizontal, o que corresponde, em certa medida, à dissolução crescente que experimentamos entre arte e vida. Desde que Robert Rauschenberg, em 1955, besuntou sua cama de tinta, junto com colcha e travesseiro, e a levantou para a posição vertical – a posição contemplativa da arte, abandonando a horizontalidade das ações cotidianas: dormir, sentar, apoiar objetos sobre a mesa –, encostando-a na parede, essa questão se tornou central para a arte, incorporando de forma estrutural o espectador no trabalho. Contudo, há nesses trabalhos de Carlito algo de surrealista (escheriano ou magrittiano), no modo como teto, parede e piso se contaminam reciprocamente, e como objetos de uso cotidiano, tais como copos, vão parar em outros lugares sem perder as suas identidades reconhecíveis.
Aliás, essa insistência na conservação da identidade das coisas é justamente algo que distingue fortemente o trabalho atual de Carlito do expressionismo matérico e gestual que marcou a produção do grupo Casa 7, do qual ele fazia parte, no final dos anos 1980 e início dos 90. Nos trabalhos que faz há pelo menos mais de dez anos, Carlito Carvalhosa prefere conservar, através de uma certa literalidade, a identidade externa dos objetos. Daí a presença de um marcado pudor expressivo em seus trabalhos, visível no próprio título dessa exposição, precaução de contato.
Na instalação “Regra de dois” (2011), feita na Fundação Eva Klabin, no Rio de Janeiro, móveis de madeira escura, pesada e altamente adornada, pré-existentes naqueles ambientes que foram domésticos, são levantados do chão por copos e taças de vidro que passam a apoiá-los de maneira vertiginosamente instável. Mal comparando, é como se um edifício se apoiasse não sobre pilares – os equivalentes aos pés dos móveis –, mas sobre frágeis paredes ou colunas de vidro, em um claro paradoxo tectônico. Carlito, ainda nessa instalação, reforça o sentido de suspensão etérea desses móveis instalando linhas de lâmpadas fluorescente no chão, criando assim um halo frio e imaterial que parece eliminar o próprio chão, sobrando apenas cadeiras e outros móveis baixos, além de copos, soltos no espaço. De fato, a ideia de contato ali se reduz a uma dimensão mínima, enquanto que os objetos mantêm intacta a sua integridade formal.
Também nas pinturas essa mesma questão se manifesta, ainda que de outra forma. Ali, a tinta óleo escorrega levemente sobre as placas de alumínio espelhado em um contato aversivo, que não se sedimenta. Vazados em negativo, os desenhos são aberturas refletivas luminosas sobre essas massas de cor azul. A precaução de contato, aqui, é também diminuição de vínculos, alusão a um mundo no qual as coisas (e pessoas) não se colam mais umas às outras, apenas escorregam e se refletem mutuamente. Um mundo em que o chão virou parede, em que a parede que virou teto, e assim por diante. Um mundo, portanto, onde as coisas escorregam e escapam dos seus lugares habituais, trocando de posição, esquivando-se constantemente.