Em “Sala de Espera”, que inaugura o anexo do Museu de Arte Contemporânea em São Paulo, Carlito Carvalhosa trava um embate sutil com o espaço amplo, vazio e límpido projetado em 1950 por Oscar Niemeyer através de um único e potente material: a madeira. Em torno das claras sucessões de colunas brancas, que sustentam e dão uma precisão geométrica ao espaço, distribuiu cerca de 80 postes, de 9 a 12 metros de comprimento, que um dia serviram de sustentação para a iluminação pública. Não se trata de uma composição regrada, metódica. Sua aparência remete mais ao caráter orgânico, indisciplinado das matas, ou ao tênue equilíbrio dos palitos lançados casualmente no jogo infantil das varetas. O conjunto cria uma paisagem estranha, provocativa, construída na horizontal. Como diz o artista, é quase como uma “floresta deitada”.
A semelhança com o jogo para aí. O desafio proposto não é o do equilíbrio, o de retirar uma vareta sem que as outras se movimentem, mas sim o de provocar o espectador, fazendo-o descobrir como um emaranhado de obstáculos concretos e visuais pode transformar de maneira significativa nossa percepção do mundo. Como sintetiza o crítico Fernando Cocchiarale, Carlito Carvalhosa não pretende com esses trabalhos “estimular a observação detida das possíveis propriedades estéticas do trabalho, mas permitir sua apreensão sensível, de mudas inflexões”.
Desde o início de sua carreira, Carvalhosa demonstra interesse por materiais banais, neutros, que muitas vezes poderiam passar despercebidos e que parecem ter surgido sem maior esforço ou destreza. É o caso por exemplo do gesso, com o qual construiu diversas esculturas e instalações, como por exemplo a representação do topo decepado e invertido do pão de Açúcar exposto no MAM-RJ (Já estava assim quando cheguei, 2006) – e que faz referência também ao fato de o artista, paulistano, ter se radicado no Rio de Janeiro há cerca de uma década. Ou dos tecidos translúcidos explorados em intervenções como a do MoMA (Sum of Days, 2011) e da 11a Bienal de Havana (Vulgo, 2012). A brancura, o caráter velado e a natureza ambígua desses materiais são parte vital da estratégia de velar/desvelar o que há de oculto, imperceptível porque naturalizado nos espaços institucionais acionados pelos trabalhos.
Da mesma forma, os postes velhos pontuam e referenciam a cena. Eles já haviam surgido em seu trabalho de forma reduzida em intervenção realizada em 2010, no Palácio da Aclamação em Salvador, suspensos – ao lado de uma grande aroeira viva – no vão central do palacete neoclássico. Aparentemente há pouco em comum entre essa intervenção e a do anexo projetado por Niemeyer como complemento ao prédio agora ocupado pelo MAC e que durante décadas sediou o Detran. Mas em ambos chega, por caminhos opostos, a resultados bastante próximos: obtêm a atenção do espectador, sublinha aspectos menos visíveis desses locais e cria uma instigante confusão temporal e espacial. “É curioso que tanto o palácio italiano de Salvador quanto essa sala modernista apontam para algo que não está lá”, aponta o artista. “Em 1900 queria-se um passado, em 1950 um futuro”, ironiza ele, destacando as vocações naturais desses lugares, subvertidas por suas intervenções.
No caso do anexo do MAC, que se torna a partir de agora um importante espaço experimental para a arte contemporânea, a situação é ainda mais peculiar. Ao mesmo tempo que possui toda a configuração típica da arquitetura modernista de meados do século XX – “a primeira vez que vi o espaço ele me pareceu um mundo muito ideal, com suas colunas que se multiplicam”, conta o artista –, ele ainda não tem qualquer referência como espaço museológico. Está, como diz o título da exposição, em estado de “espera”. Sua vastidão, o caráter ideal de suas colunas, a pureza imaculada do branco apontam para algo que ainda não se realizou. Por isso, ao invés de velar o que havia se tornado imperceptível pelo efeito do tempo, trouxe para dentro do lugar ainda estéril a história sedimentada nos postes.
Diante de um lugar que mais se assemelha a um papel em branco, Carvalhosa age como desenhista, com grande simplicidade, estabelecendo um diálogo ao mesmo tempo impertinente e sedutor. Impertinente porque corta, desvirtua a regra das colunas verticais, as desorganiza e reestrutura num jogo caótico de troncos que ainda carregam a marca do tempo, trazem embutidos em sua cor e textura uma longa trajetória, de árvore a poste, de poste a sucata... Também porque eles propositalmente desrespeitam os margens do “papel”, não se deixando conter em seus limites, extravasando – na medida do permitido, já que o conjunto do Ibirapuera é um bem arquitetônico tombado – a moldura das paredes internas. E sedutor porque o olhar – e o corpo – se sentem atraídos a explorar, as múltiplas configurações desse desenho construído no espaço.
São Paulo, março de 2013
A semelhança com o jogo para aí. O desafio proposto não é o do equilíbrio, o de retirar uma vareta sem que as outras se movimentem, mas sim o de provocar o espectador, fazendo-o descobrir como um emaranhado de obstáculos concretos e visuais pode transformar de maneira significativa nossa percepção do mundo. Como sintetiza o crítico Fernando Cocchiarale, Carlito Carvalhosa não pretende com esses trabalhos “estimular a observação detida das possíveis propriedades estéticas do trabalho, mas permitir sua apreensão sensível, de mudas inflexões”.
Desde o início de sua carreira, Carvalhosa demonstra interesse por materiais banais, neutros, que muitas vezes poderiam passar despercebidos e que parecem ter surgido sem maior esforço ou destreza. É o caso por exemplo do gesso, com o qual construiu diversas esculturas e instalações, como por exemplo a representação do topo decepado e invertido do pão de Açúcar exposto no MAM-RJ (Já estava assim quando cheguei, 2006) – e que faz referência também ao fato de o artista, paulistano, ter se radicado no Rio de Janeiro há cerca de uma década. Ou dos tecidos translúcidos explorados em intervenções como a do MoMA (Sum of Days, 2011) e da 11a Bienal de Havana (Vulgo, 2012). A brancura, o caráter velado e a natureza ambígua desses materiais são parte vital da estratégia de velar/desvelar o que há de oculto, imperceptível porque naturalizado nos espaços institucionais acionados pelos trabalhos.
Da mesma forma, os postes velhos pontuam e referenciam a cena. Eles já haviam surgido em seu trabalho de forma reduzida em intervenção realizada em 2010, no Palácio da Aclamação em Salvador, suspensos – ao lado de uma grande aroeira viva – no vão central do palacete neoclássico. Aparentemente há pouco em comum entre essa intervenção e a do anexo projetado por Niemeyer como complemento ao prédio agora ocupado pelo MAC e que durante décadas sediou o Detran. Mas em ambos chega, por caminhos opostos, a resultados bastante próximos: obtêm a atenção do espectador, sublinha aspectos menos visíveis desses locais e cria uma instigante confusão temporal e espacial. “É curioso que tanto o palácio italiano de Salvador quanto essa sala modernista apontam para algo que não está lá”, aponta o artista. “Em 1900 queria-se um passado, em 1950 um futuro”, ironiza ele, destacando as vocações naturais desses lugares, subvertidas por suas intervenções.
No caso do anexo do MAC, que se torna a partir de agora um importante espaço experimental para a arte contemporânea, a situação é ainda mais peculiar. Ao mesmo tempo que possui toda a configuração típica da arquitetura modernista de meados do século XX – “a primeira vez que vi o espaço ele me pareceu um mundo muito ideal, com suas colunas que se multiplicam”, conta o artista –, ele ainda não tem qualquer referência como espaço museológico. Está, como diz o título da exposição, em estado de “espera”. Sua vastidão, o caráter ideal de suas colunas, a pureza imaculada do branco apontam para algo que ainda não se realizou. Por isso, ao invés de velar o que havia se tornado imperceptível pelo efeito do tempo, trouxe para dentro do lugar ainda estéril a história sedimentada nos postes.
Diante de um lugar que mais se assemelha a um papel em branco, Carvalhosa age como desenhista, com grande simplicidade, estabelecendo um diálogo ao mesmo tempo impertinente e sedutor. Impertinente porque corta, desvirtua a regra das colunas verticais, as desorganiza e reestrutura num jogo caótico de troncos que ainda carregam a marca do tempo, trazem embutidos em sua cor e textura uma longa trajetória, de árvore a poste, de poste a sucata... Também porque eles propositalmente desrespeitam os margens do “papel”, não se deixando conter em seus limites, extravasando – na medida do permitido, já que o conjunto do Ibirapuera é um bem arquitetônico tombado – a moldura das paredes internas. E sedutor porque o olhar – e o corpo – se sentem atraídos a explorar, as múltiplas configurações desse desenho construído no espaço.
São Paulo, março de 2013