publicado na Folha de S.Paulo, setembro de 2008
Sempre é importante saber o quê. E se for arte, o como costuma ser até mais. De todo modo, em qualquer parte, onde e quando é o mínimo que se quer para começar. O negócio é que “Faz Parte”, de Carlito Carvalhosa, se faz de muito pouco e coloca tudo o que é básico – e até o que não é – num regime indecidível de alternância e complementariedade. No momento, o trabalho está no Gabinete de Arte Raquel Arnaud. Durante algum tempo, esteve simultaneamente na Galeria Millan, com uma montagem bastante semelhante à do Gabinete: nos dois casos, espécies de duplicação dos cubos brancos das galerias, em ambientes sem portas e quase inteiramente vazios, delimitados por um tecido leve e translúcido, com a ajuda de luz fria, e atravessados de vez em quando por um ou outro ruído casual, que parece não vir dali. Um som que passa.
Mas logo começam a aflorar diferenças, em remissão cruzada. Na Millan, a luz vem do alto, em três espaços conjugados, e nem todos vazios: num deles estão umas poucas peças redondas de vidro, como grandes lentes, deixadas no chão. No Gabinete de Arte, as lentes estão sobre uma mesa e uma base baixa, fora da área delimitada pelo tecido, que é uma só, com duas fontes de luz, na frente e no fundo dessa sala-dentro-da-sala, e nas outras laterais, por detrás dos panos, espelhos: espelho claro de um dos lados, escuro do outro. Andar no espaço estreito que sobra entre o pano branco e a parede nua numa galeria, ou entre pano e paredes espelhadas, na outra, são experiências sensivelmente diferentes – assim como ambas são diferentes de estar dentro de uma das salas de pano, onde se entra levantando qualquer parte do tecido. Além disso, os sons ouvidos numa galeria são captados na outra depois do expediente, por um microfone aberto durante toda a noite, para então serem reproduzidos no dia seguinte na primeira galeria, e vice-versa, num tipo de defasagem de tempo e lugar.
As diferenças são, no entanto, impurezas do branco, não tantas assim que cheguem a cancelar a relação de participação entre os dois lugares. Tudo se passa como se, ao entrar numa dessas salas, em que nada de mais acontece, só nos fosse oferecido um reles “isto é isto”. Mas se existe (ou existiu, não importa) um quase duplo desse lugar em outra parte, “isto é aquilo” também. Demorando-se mais um pouco ali, a experiência de um E/OU corporificado talvez comece a medrar. E ela pode ser muitas coisas, menos pacífica. Diferenças ressaltam justamente por que em cada parte há pouca coisa, tão pouca que cada agora, aqui, isto, aquilo é muito – tanto faz se numa ou se noutra montagem. “Faz parte”, o dito mal resignado de todo dia, passa a incluir também fazer a parte, realizar integralmente uma parcela, aqui e agora, levando em conta lentes e fios aparentes como alguma sobra que, afinal, faz parte, sabendo sempre que resta outro pedaço lá e então. Não parece uma figura estranha ao desencontro marcado que caracteriza há tempos o trabalho de Carlito. Nem ao modo de vida mais e mais imerso naquele sentimento de não estar de todo, na volatilidade da presença com que fazemos do mínimo sinal, para o mal e/ou para o bem, um acontecimento.
Sempre é importante saber o quê. E se for arte, o como costuma ser até mais. De todo modo, em qualquer parte, onde e quando é o mínimo que se quer para começar. O negócio é que “Faz Parte”, de Carlito Carvalhosa, se faz de muito pouco e coloca tudo o que é básico – e até o que não é – num regime indecidível de alternância e complementariedade. No momento, o trabalho está no Gabinete de Arte Raquel Arnaud. Durante algum tempo, esteve simultaneamente na Galeria Millan, com uma montagem bastante semelhante à do Gabinete: nos dois casos, espécies de duplicação dos cubos brancos das galerias, em ambientes sem portas e quase inteiramente vazios, delimitados por um tecido leve e translúcido, com a ajuda de luz fria, e atravessados de vez em quando por um ou outro ruído casual, que parece não vir dali. Um som que passa.
Mas logo começam a aflorar diferenças, em remissão cruzada. Na Millan, a luz vem do alto, em três espaços conjugados, e nem todos vazios: num deles estão umas poucas peças redondas de vidro, como grandes lentes, deixadas no chão. No Gabinete de Arte, as lentes estão sobre uma mesa e uma base baixa, fora da área delimitada pelo tecido, que é uma só, com duas fontes de luz, na frente e no fundo dessa sala-dentro-da-sala, e nas outras laterais, por detrás dos panos, espelhos: espelho claro de um dos lados, escuro do outro. Andar no espaço estreito que sobra entre o pano branco e a parede nua numa galeria, ou entre pano e paredes espelhadas, na outra, são experiências sensivelmente diferentes – assim como ambas são diferentes de estar dentro de uma das salas de pano, onde se entra levantando qualquer parte do tecido. Além disso, os sons ouvidos numa galeria são captados na outra depois do expediente, por um microfone aberto durante toda a noite, para então serem reproduzidos no dia seguinte na primeira galeria, e vice-versa, num tipo de defasagem de tempo e lugar.
As diferenças são, no entanto, impurezas do branco, não tantas assim que cheguem a cancelar a relação de participação entre os dois lugares. Tudo se passa como se, ao entrar numa dessas salas, em que nada de mais acontece, só nos fosse oferecido um reles “isto é isto”. Mas se existe (ou existiu, não importa) um quase duplo desse lugar em outra parte, “isto é aquilo” também. Demorando-se mais um pouco ali, a experiência de um E/OU corporificado talvez comece a medrar. E ela pode ser muitas coisas, menos pacífica. Diferenças ressaltam justamente por que em cada parte há pouca coisa, tão pouca que cada agora, aqui, isto, aquilo é muito – tanto faz se numa ou se noutra montagem. “Faz parte”, o dito mal resignado de todo dia, passa a incluir também fazer a parte, realizar integralmente uma parcela, aqui e agora, levando em conta lentes e fios aparentes como alguma sobra que, afinal, faz parte, sabendo sempre que resta outro pedaço lá e então. Não parece uma figura estranha ao desencontro marcado que caracteriza há tempos o trabalho de Carlito. Nem ao modo de vida mais e mais imerso naquele sentimento de não estar de todo, na volatilidade da presença com que fazemos do mínimo sinal, para o mal e/ou para o bem, um acontecimento.