Ainda não tínhamos visto uma galeria de espelhos como esta. Espelhos que, caso os encontrássemos por aí, diríamos defeituosos ou imperfeitos. Pois só um defeito qualquer de fabricação poderia fazer com que o reflexo que sempre esperamos de volta seja obstruído por um empastado ou borrão, que lá de dentro , preso e imobilizado, aparece diante da nossa cara. De modo que vemos a nós mesmos, mas não identificamos exatamente aquilo que ali se intrometeu, nem se está lá para ser visto ou para dificultar que nos vejamos.
Um espelho não é uma superfície qualquer, inevitavelmente atrai nosso impulso narcisista. Não há como resistir à força que leva nosso olhar inapelavelmente para a superfície que ele é, e nela nos vemos duplamente: na pintura e no espelho. E aquilo que se intrometeu, está na ‘pintura’, fica entre nós e nossa imagem refletida, e dele temos que nos desviar para nos ver. O defeito é então efeito? O “espelho, espelho meu” está ocupado por outro alguém sem que entendamos muito bem como foi parar ali dentro. Por onde terá entrado? Obra que a viscosa matéria graxa é capaz de fazer e infiltrando-se, se alojou - meio indesejada? - lá dentro e incomodamente também na nossa frente. Da horizontalidade passou à verticalidade, como uma poça jogada na nossa cara; o chão veio para a parede e na graxa se imprimiu a violência visual totalizante de hoje, que, ao menos, é dada aqui pela matéria ela própria, sem manipulações.
Estas pinturas que colocam nossa presença dentro delas são também espelhos. Estamos lá dentro quando as vemos e nos vemos vendo. Mas, na superfície também está algo que não sabemos bem o que é habitando lá. Uma imagem um tanto sem morada foi parar exatamente ali, onde qualquer um passa , se olha e segue adiante, mas não fica e permanece. O espelho tornou-se uma viscosa vitrine roubada ao nosso uso próprio e na qual a imagem que aparece meio pegajosa tem uma feição cafona glitter de um apelo dúbio, que o falso charme da graxa faz uso, e constitui um visual que intriga.
Por meio disso que ocorre no espelho, Carlito Carvalhosa, penso eu, dá continuidade ao impulso da forma, próprio à pintura, mas que vai habitar de agora em diante o oscilante e o ambivalente, o íntegro e o suspeito, o vulgar e o sofisticado, transferindo assim a autonomia da forma para o comportamento singular de um material ordinário, a graxa. O princípio vigente da plasticidade total que se expressa nas manchas e borrões graxentos, a superfície do espelho procura repelir, já que manifestam o desagradável desfoque, contrário à nitidez especular inequívoca - assim a experiência visual que se apresenta sugere todo um conjunto de referências disparatadas e externas à forma tomada isoladamente.
Se percebe; o trabalho deixou a anterior organização fechada para se expor à contaminação externa ampliada e arriscada. A forma anterior, orgânica e dominada pela organicidade, circunscrita pela monocromia e pela coesão própria de uma matéria única, parece ter circulado por ambientes insuspeitos, ou francamente suspeitos, dos quais o espelho é testemunha. Essas imagens andaram por aí, experimentaram do reflexo em excesso das vitrines popularescas enjoativas ao brilho vulgar glitter, o realce dúbio da desclassificação cultural que a indiferenciação põe em evidência e rebaixa tudo. O império do narcisismo viscoso e disforme que parece superficial, especular, mas não é. Portanto, reconverter à experiência da forma uma degradação marcada pelo consumo apelativo comercial dela própria se torna um desafio interessante. Estamos ainda em algum ponto além daquele processo que Andy Warhol acompanhou de perto, dissolvido agora numa emulsão pós-kitsch do hiper pop glamurizado; etapas da feroz degradação que a arte acompanhou. Retirar desta feição grotescamente auto-satisfeita alguma expressão de beleza é como um trabalho de descontaminação. Para tanto é preciso suspender no vazio o fascínio que esse brilho exerce inapelavelmente e reconverter a fatuidade que dele emana e encanta. Um pouco deste movimento do trabalho de Carlito tem algo da arquitetura contemporânea que também procura dar expressão plástica à saturação tecnológica e articula livremente o efeito da imagem às possibilidades do material e vice versa; como as curvas de titânio de Frank Ghery, para dar um exemplo.
É razoável que o espelho venha após o gesso, do qual é o oposto. Como se um absorvesse e capturasse o outro visualmente; pares que se negam mutuamente, um procurando ocupar o lugar do outro. E, ambos, simultaneamente, demostram essa disfuncionalidade da totalização da imagem que o trabalho de Carlito Carvalhosa buscou acentuar e que manifesta um estado de coisas atual: o muito que se oferece ao olhar e o pouco que exige o ver.
Um espelho não é uma superfície qualquer, inevitavelmente atrai nosso impulso narcisista. Não há como resistir à força que leva nosso olhar inapelavelmente para a superfície que ele é, e nela nos vemos duplamente: na pintura e no espelho. E aquilo que se intrometeu, está na ‘pintura’, fica entre nós e nossa imagem refletida, e dele temos que nos desviar para nos ver. O defeito é então efeito? O “espelho, espelho meu” está ocupado por outro alguém sem que entendamos muito bem como foi parar ali dentro. Por onde terá entrado? Obra que a viscosa matéria graxa é capaz de fazer e infiltrando-se, se alojou - meio indesejada? - lá dentro e incomodamente também na nossa frente. Da horizontalidade passou à verticalidade, como uma poça jogada na nossa cara; o chão veio para a parede e na graxa se imprimiu a violência visual totalizante de hoje, que, ao menos, é dada aqui pela matéria ela própria, sem manipulações.
Estas pinturas que colocam nossa presença dentro delas são também espelhos. Estamos lá dentro quando as vemos e nos vemos vendo. Mas, na superfície também está algo que não sabemos bem o que é habitando lá. Uma imagem um tanto sem morada foi parar exatamente ali, onde qualquer um passa , se olha e segue adiante, mas não fica e permanece. O espelho tornou-se uma viscosa vitrine roubada ao nosso uso próprio e na qual a imagem que aparece meio pegajosa tem uma feição cafona glitter de um apelo dúbio, que o falso charme da graxa faz uso, e constitui um visual que intriga.
Por meio disso que ocorre no espelho, Carlito Carvalhosa, penso eu, dá continuidade ao impulso da forma, próprio à pintura, mas que vai habitar de agora em diante o oscilante e o ambivalente, o íntegro e o suspeito, o vulgar e o sofisticado, transferindo assim a autonomia da forma para o comportamento singular de um material ordinário, a graxa. O princípio vigente da plasticidade total que se expressa nas manchas e borrões graxentos, a superfície do espelho procura repelir, já que manifestam o desagradável desfoque, contrário à nitidez especular inequívoca - assim a experiência visual que se apresenta sugere todo um conjunto de referências disparatadas e externas à forma tomada isoladamente.
Se percebe; o trabalho deixou a anterior organização fechada para se expor à contaminação externa ampliada e arriscada. A forma anterior, orgânica e dominada pela organicidade, circunscrita pela monocromia e pela coesão própria de uma matéria única, parece ter circulado por ambientes insuspeitos, ou francamente suspeitos, dos quais o espelho é testemunha. Essas imagens andaram por aí, experimentaram do reflexo em excesso das vitrines popularescas enjoativas ao brilho vulgar glitter, o realce dúbio da desclassificação cultural que a indiferenciação põe em evidência e rebaixa tudo. O império do narcisismo viscoso e disforme que parece superficial, especular, mas não é. Portanto, reconverter à experiência da forma uma degradação marcada pelo consumo apelativo comercial dela própria se torna um desafio interessante. Estamos ainda em algum ponto além daquele processo que Andy Warhol acompanhou de perto, dissolvido agora numa emulsão pós-kitsch do hiper pop glamurizado; etapas da feroz degradação que a arte acompanhou. Retirar desta feição grotescamente auto-satisfeita alguma expressão de beleza é como um trabalho de descontaminação. Para tanto é preciso suspender no vazio o fascínio que esse brilho exerce inapelavelmente e reconverter a fatuidade que dele emana e encanta. Um pouco deste movimento do trabalho de Carlito tem algo da arquitetura contemporânea que também procura dar expressão plástica à saturação tecnológica e articula livremente o efeito da imagem às possibilidades do material e vice versa; como as curvas de titânio de Frank Ghery, para dar um exemplo.
É razoável que o espelho venha após o gesso, do qual é o oposto. Como se um absorvesse e capturasse o outro visualmente; pares que se negam mutuamente, um procurando ocupar o lugar do outro. E, ambos, simultaneamente, demostram essa disfuncionalidade da totalização da imagem que o trabalho de Carlito Carvalhosa buscou acentuar e que manifesta um estado de coisas atual: o muito que se oferece ao olhar e o pouco que exige o ver.