texto publicado no livro Carlito Carvalhosa, Cosac & Naify, São Paulo, 2000, p 23-26
— O que é, o que é? Tem escama e não é peixe. Tem coroa e não é rei.
Não fossem tão singelas, charadas como essa descreveriam seres bem estranhos. Mas a infância tem mesmo dessas coisas. Trocar o lugar e a função dos objetos – fazer revólver de um chinelo, cavalgar garbosamente um cabo de vassoura, tornar um galho qualquer numa espada invencível. E então um simples abacaxi pode mostrar-se um híbrido de peixe e majestade, vivendo entre a água e o trono, insólito como o “encontro acidental de um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de autópsia”, de que falava Lautréamont e que fez a alegria dos surrealistas. Mas essa estranheza dura bem pouco. Apenas o tempo necessário para matarmos a charada e recolocarmos as coisas no lugar. Aos poucos as metáforas vão aderindo aos elementos a que se referem, até que ambos se recobrem com perfeição e tudo volta ao seu sentido corriqueiro: coroas são apenas braqueteas – as folhas do abacaxi –, e as escamas não passam das flores dessa bromeliácea.
Os trabalhos mais recentes de Carlito Carvalhosa parecem ter a forma dessas charadas. Tomemos por exemplo as esculturas de porcelana, expostas em 1997 no Gabinete de Arte Raquel Arnaud [pp. 28–41]. Foram maleáveis ao nascer, ao queimar se enrijeceram e voltaram a amolecer quando iluminadas. E poderíamos ir mais longe, pois os paradoxos apresentados por essas peças parecem não ter fim. Talvez venha justamente daí a absoluta falta de empatia desses trabalhos, pois eles reúnem qualidades plásticas que não deveriam conviver entre si, e que por estarem juntas põem nossa percepção numa situação difícil, já que é praticamente impossível acomodá-las num mesmo objeto.
As esculturas de porcelana têm um aspecto orgânico indiscutível. A irregularidade de sua superfície e de seus contornos indica que em seu interior ocorrem certos metabolismos, dos quais elas são apenas expressão. Pelos orifícios das peças vemos que elas contêm uma face oculta, que sem dúvida guarda uma vida ativa e misteriosa. De algum modo, interior e exterior se comunicam, embora não saibamos bem como. Mas tão logo nossa vista se detém mais demoradamente sobre essas superfícies, vemos que nada disso faz muito sentido. O esmalte que as recobre adquiriu uma aparência vítrea ao ser aquecido, que impede supor aí qualquer permeabilidade. Assim, aquelas regiões porosas, vitais, revelam-se puramente ilusórias, e passa a prevalecer a rigidez unívoca de um material asséptico, extremamente artificial. E então interior e exterior perdem o contato, tornam-se regiões autônomas, indiferentes ao destino um do outro. O que se mostrava vivo adquire a aparência de um produto industrializado: algo entre uma pia e um vaso sanitário. Talvez um bibelô de louça que um Oldenburg mais perverso resolvesse deformar. E aqueles orifícios que punham em contato dentro e fora se assemelham agora mais aos olhos de um peixe morto. Morto, mas ainda peixe – porque também não conseguimos nos desvencilhar completamente daqueles seres orgânicos que deslizavam à nossa frente, por mais que eles insistam em exibir sua superfície esmaltada.
Essa separação entre interior e exterior nos conduz a ver as esculturas como coisas feitas, e não mais como organismos que se desenvolvessem por si mesmos. Assim orientada, a percepção se detém na expressividade da mão que trabalhou os materiais – argila, gesso ou cera, que serviram como molde para a peça que será finalmente modelada em cerâmica –, deixando gravadas neles suas certezas e vacilações. Aos poucos, volumes vão se constituindo a partir desses gestos, e também suas formas reproduzem aquele fazer renitente, que quer retirar dos materiais alguma expressão. Vem daí o aspecto tortuoso e indeciso dos volumes, que insistem em não perder de vista a maleabilidade dos materiais de que partiram, ainda que venham a ser traduzidos numa outra substância.
Novamente porém outros elementos vêm conspirar contra a afirmação dessa tendência expressiva. A camada branca que recobre uniformemente as peças se interpõe entre os gestos e a determinação dos volumes. Nada é branco e brilhante impunemente. Os pequenos toques, as manipulações detidas perdem contato com a forma total dos corpos, pois uma unidade mais forte os domina: o branco frio da porcelana, com sua luz crua, hospitalar.
E os paradoxos não param por aí. Pois logo a luz incide sobre as superfícies rígidas, empoça em suas concavidades e dá aos trabalhos uma feição úmida. Em lugar de simplesmente escorrer sobre os volumes e revelar sua impenetrabilidade – algo que em boa medida marcou toda a tradição escultórica –, a luz é refletida irregularmente pelas camadas esmaltadas, voltando a proporcionar-lhes uma consistência mais plástica, como se as esculturas tivessem sido retiradas da água naquele preciso instante, perdendo assim parte de sua solidez. E o que dizer dos tubos regulares que se justapõem meio pateticamente às obras, buscando dar direção a coisas que se recusam a ser orientadas?
Como se vê, boa parte do interesse – e, por que não dizer, do incômodo – dessas esculturas de Carlito Carvalhosa reside numa espécie de convívio cindido entre aspectos formais que deveriam se apresentar unificados. Interior e exterior, gesto e volume, luz e consistência, direção e dispersão sobressaem alternadamente, sem que cheguem a uma unidade relativamente harmônica. E é essa dissociação dos objetos que os diferencia de trabalhos como o de Paulo Monteiro, Laura Vinci e Marcia Pastore, que à sua maneira lidam com formas semelhantes, embora resolvendo-as de maneira diversa.
Diante dessas discrepâncias, o observador se vê forçado a deslocar constantemente sua atenção, na tentativa de encontrar um modo de dispor a percepção mais adequadamente, aproximando as facetas apropriadas das peças. Entre bicho e bibelô industrial, as obras fogem continuamente de foco. E quando fixamos uma certa qualidade – digamos, a rigidez –, lá vem um outro elemento desvirtuá-la, por exemplo aquela luz que amolece as superfícies, embora também revele a sua textura artificial e enrijecida. Portanto, diferentemente das charadas, a discriminação dos vários aspectos formais das esculturas não encontra solução possível. Elas não fecham. Seria o mesmo que imaginar um trabalho com o vitalismo de Arp, mais o brilho de certas peças de Brancusi, além do gesto errante das esculturas de Giacometti. Tudo junto, e orquestrado por uma Eva Hesse ainda menos minimalista. E no entanto não há o menor vestígio de pós-modernismo nos trabalhos de Carlito Carvalhosa. O aspecto individualizado dos diversos elementos formais – volume, interior, luz, solidez etc. – está muito distante das citações pós-modernas, seja de traços de outras obras de arte, seja de aspectos arquitetônicos de épocas desencontradas. Aqui, a própria forma tem uma natureza cindida, ao contrário do que ocorre com as narrativas de parte da arte contemporânea.
Mas foi aos poucos que Carlito Carvalhosa chegou a essas configurações. Antes seu trabalho procurava um vínculo mais direto entre matéria e forma, indo de uma maior ênfase na construção a uma dimensão expressiva da matéria. Os quadros pintados com cera, sem pigmento, realizados entre 1985 e 1987 [pp. 110–121], tiravam um partido meio construtivo da maleabilidade e da translucidez do material1. Algumas áreas das obras – sempre regulares – recebiam mais camadas de cera do que outras. Com isso se obtinham regiões que reagiam diferentemente à ação da luz, organizando-se conforme o maior ou o menor grau de transparência. Mas mesmo nessas obras a estruturação dos espaços não era unívoca. As superfícies de cera possuíam uma constituição pouco homogênea. Aqui e ali se formavam pequenos grumos, as sobreposições de camadas criavam zonas mais opacas – e esses acidentes desviavam o olhar das definições mais regulares, detendo-no no que ocorria nas superfícies. O rebaixamento dos contrastes – forçando a percepção a identificar minuciosamente os processos construtivos que as produziram – acentuava a presença dos quadros enquanto textura e fatura, ao mesmo tempo em que precisava evitar qualquer movimento expressivo mais forte. Contudo, a indefinição entre construção e fatura, dada a necessidade de manter os quadros nos limites da diferenciação – o que sem dúvida derivava da influência do minimalismo –, fazia com que esses trabalhos aparecessem antes como um comentário à pintura do que como uma tentativa de levá-la adiante, o que, a meu ver, reduzia seu alcance estético.
Posteriormente, Carlito Carvalhosa decidiu tirar maior proveito da expressividade da cera e da parafina. Entre os anos de 1990 e 1994, esses materiais ganharam um aspecto decididamente orgânico [pp. 94–109 e 134–145]. Um corpo dúbio – movendo-se entre prazer e dor, lascívia e culpa – insinuavase a todo momento entre as camadas dos quadros. As superfícies macias, sensuais, falavam de lugares indefinidos, prontos a se entregar a deslocamentos de temperatura, e aptos a ser conformados pelo toque das mãos. A espessura das camadas de cera apontava a densidade de algo que recusava qualquer identidade imediata, já que supunha uma constituição complexa, em que aparição e oculta-mento trocavam de posição sem cessar. Tudo portanto apontava para uma disponibilidade praticamente sem limites, aberta a todas as aventuras. Mas tão logo surgiam algumas definições, assim que certas áreas se distinguiam nas extensões de cera, tudo mudava de figura: manchas arroxeadas, estrias de dor mostravamse aqui e ali, como se toda particularização daqueles corpos supusesse uma violên-cia que maculasse o que antes era pura densidade. Ou então pequenas protuberâncias despontavam para além das superfícies, num movimento vago que as impedia de se transformar em coisas mais de-lineadas. Assim interrompidos, aqueles volumes adquiriam um ar meio doentio, de algo que não pôde chegar a ser plenamente, pois teve seu desenvolvimento truncado. Nesses trabalhos, o corpo se revelava uma paixão inútil, pois sempre que se limitava – ou seja, sempre que passava de uma sen-sualidade difusa para uma sexualidade mais definida – misturavase a sentimentos de dor e deforma-ção.
As “Ceras perdidas” de 199495 [pp. 80–93] procuravam encontrar um meio-termo entre a dimensão construtiva dos primeiros trabalhos de cera e a natureza aversiva das obras que os sucederam. E Alberto Tassinari mostrou isso com precisão: “Certa visão de uma dessas esculturas pode mesmo provocar o asco. Uma outra visão da mesma escultura nos porá em face de algo como uma asa leve e inesperada. E tudo se faz sem muito barulho. Passa-se continuamente de uma coisa a outra. Feias entranhas começam pelo contorno de uma linha ondulada com graça. Ou então é um rasgo áspero que nos leva para dentro de uma luminosidade envolvente. Feitas de opostos – mas que convivem sem traumas –, as esculturas de Carlito Carvalhosa são como o ovo de Colombo”2. Nesses trabalhos ainda era possível a convivência de aspectos contrapostos, que se alternavam sem grandes problemas. A plasticidade da cera garantia ao mesmo tempo a evidenciação do processo construtivo – a lembrança dos cilindros que a moldaram – e de sua impossibilidade enquanto processo totalizante.
No entanto, as peças mais recentes do artista – os trabalhos de porcelana e as obras de gesso expostas pela primeira vez na V Semana de Arte de Londrina, em 1998 – tornaram aquela convivência algo realmente impossível, sem compromisso [pp. 42–51]. Não estou afirmando que Carlito Carvalhosa tenha conduzido sua produção com a clareza que a sumária descrição feita anteriormente pode sugerir. O movimento que conduz de um vínculo direto entre forma e matéria – seja ele mais construtivo ou mais expressivo – à sua dissociação irremediável também incorpora muito dos percalços por que vem passando a forma contemporânea. E penso que observar a sua trajetória a partir dos últimos e mais bem-sucedidos trabalhos – e não cronologicamente – ajuda a entender melhor as dificuldades enfrentadas pelo artista e a relevância alcançada pelo seu modo de ordenar as coisas.
Parece-me plausível afirmar que o domínio tecnológico sobre a natureza vem em parte da capacidade de isolar e tirar proveito de algumas qualidades dos materiais, colocando-as a serviço de objetivos produtivos: produzir vergalhões a partir da resistência do ferro, criar toda sorte de plásticos tendo como base o fracionamento do petróleo, obter celulose a partir de certas árvores, extraindo homogeneamente suas fibras. Minério de ferro, petróleo e árvores certamente podem servir para outras coisas ou, então, apresentarem-se apenas como são, e terão aparências diversas. Mas por intermédio daqueles processos adquirem uma feição homogênea que mal permite remeter aos materiais de origem.
O que Carlito Carvalhosa conquistou nas esculturas mais recentes foi a possibilidade de reunir de maneira desencontrada e tensa características de um mesmo material. E não penso que haja aí apenas um protesto ecológico, uma denúncia bem-sucedida contra a instrumentalização da natureza e as monstruosidades que produz. Suas formas cindidas põem antes em xeque a ilusão de harmonia e plasticidade que deriva dessa suposta capacidade de transformar tudo em tudo, chegando a considerar assim as próprias relações sociais. Suas esculturas então irão operar com elementos altamente discretos – qualidades como dureza, capacidade de refletir a luz, cor etc. –, mas com o intuito de torná-los avessos uns aos outros. E portanto inaptos a um manuseio harmonizante.
Mas para que essa operação alcançasse êxito também foi necessária uma habilidade duchampiana para lidar com as qualidades adquiridas pelos materiais. Isso já ocorria claramente com as porcelanas, que tinham seu aspecto doméstico e utilitário arrevesado pelo uso peculiar que o artista fazia delas. Com os trabalhos de gesso esse procedimento se acentua ainda mais. Gesso, para nós, converteu-se naquilo que é maleável, preliminar ou falso por excelência. Maleável porque misturado à água adquire qualquer forma; preliminar porque quase sempre, e não apenas na arte, o gesso fornece apenas um estágio intermediário, servindo de molde para se fazerem outras peças; e falso porque sua plasticidade permite que com ele forjemos aparências de toda sorte – tetos, sancas, capitéis –, sem falar que sua função de intermediário também reforça a característica de falsidade, pois ele nunca é o que ele próprio indica.
Ora, o que Carlito Carvalhosa faz interessa justamente por problematizar essas qualidades. A primeira operação é a mais simples: expor o gesso tal e qual e portanto retirá-lo da situação de simples mediador. A outra operação, ao contrário, já exige movimentos bem mais complexos. Para desfazer a impressão de maleabilidade do gesso foi preciso torná-lo quebradiço, e portanto não-plástico. Vem daí a necessidade de empilhar instavelmente os vários blocos, colocando-os na iminência de se desequilibrarem e partirem. Além disso, nos momentos em que a passagem entre os diferentes blocos se realiza quase sem interrupção – um pouco à maneira de Ulrich Rückhiem –, surge a imagem de uma massa de pedra que haveria sido talhada e reaproximada. Mas para que esse segundo passo possa ser dado cumpre reafirmar – e não negar – uma terceira característica: a falsidade. Pois apenas pela capacidade de se mostrar como aquilo que não é torna-se possível apresentar o gesso como um elemento sólido e não moldável. No entanto, tão logo reafirmamos o ar postiço do gesso fica difícil continuar observando-o como uma coisa não intermediária, como gesso exposto, pois rapidamente uma feição rochosa se insinua em sua aparência. E assim alternadamente.
A dinâmica fendida que Carlito Carvalhosa obtinha mais formalmente nas cerâmicas aqui se alcança por um deslocamento permanente das qualidades adquiridas por um determinado material – embora essas mudanças de ênfase venham a contaminar todas as relações formais, que se vêem obrigadas a exibir novamente dualidades problemáticas: aspecto orgânico e moldagem; fazer e crescimento; uma tensão entre unidade e partes etc. etc. Surgem então essas obras agressivas por sua precariedade e por seu desequilíbrio, mas que podem se tornar meigas porque foram moldadas; que se deixam enlaçar pelo espaço que as desenha, para logo depois se estilhaçarem numa revolta contra qualquer tipo de conformação; que são próximas, pois vieram da mão, e distantes em sua marcada suficiência.
Esse tipo de presença tende, sem dúvida, a reverter aquele movimento harmonizante que a dinâmica tecnológica impõe ao mundo contemporâneo. As peças são limpas, higiênicas – ladrilhos não são esmaltados à toa –, unitárias, feitas de um só material3... e no entanto separadas como água e óleo. E isso torna as cisões que presidem as esculturas ainda mais aversivas. Houvesse aí um descasamento ou oposição entre materiais de qualidades diversas – chumbo e madeira, por exemplo –, o resultado obtido seria menos contundente. Porque se afastaria da aparência homogênea e pacífica dos objetos e materiais produzidos industrialmente. Como nos desenhos obtidos pela prensagem de gesso líquido por duas lâminas de vidro, tudo aqui está perfeitamente ajustado e sem uma maior interação. A ânsia de intervir sobre os elementos e convertê-los em outra coisa se vê assim apresentada em sua agressividade: formas altamente unitárias e partidas de alto a baixo.
Mas, se essa dimensão das obras lhes dá um alcance universal – ao reverter a seu modo um processo de harmonização e conformação que ocorre em quase todos os cantos do mundo –, há nelas também um aspecto altamente particular. Inegavelmente os trabalhos mais recentes de Carlito Carvalhosa lidam calculadamente com um certo mau gosto – ainda que não tenham nada de kitsch, de busca de efeito. Por um lado, esse mau gosto decorre do uso popularesco do gesso e da cerâmica e de toda a sorte de produtos feitos com eles. São ambos falsos, baratos, indiscretos. Por outro, ele resulta da incompatibilidade entre os vários aspectos dos trabalhos, como se diz de alguém que não sabe combinar as roupas.
Ora, nada mais nacional – embora certamente não seja propriedade nossa – do que essa junção de coisas díspares e de natureza aparentemente diversa que permeia todas as classes sociais: na decoração ostensiva e pitoresca das casas ricas, na alimentação, nas letras de música, no nome dos filhos, nos interiores de bares e padarias, no modo de se vestir, de casar, de morrer etc. etc. etc. E não deixa de despertar simpatia aquele capricho – no duplo sentido do termo, de “arbítrio” e de “zelo” – que leva a juntar num mesmo ambiente espelhos, alumínio, fórmica e ladrilhos; ou os nomes dos pais nos filhos (donde Ednilton, Lucimara, Ednéia etc.); registros de linguagem desencontrados (“e hoje em homenagem ao meu fim / não fale dessa mulher perto de mim”); macarrão com arroz e feijão; móveis Luís XV e cadeiras da Bauhaus. Ou que leva a gerar essas brancaranas bundudas de peitos pequenos que são nossa perdição4. E são simpáticos justamente porque falam de falta de hierarquia e aproximação, seja de culturas, raças ou gostos. E porque supõem ausência de preconceito e liberdade.
Mas de um instante para o outro tudo se reconstrói, e o que era proximidade e zelo se transforma em tutela ou mandonismo, traços de uma sociedade plástica mas extremamente hierarquizada. Ao problematizar o domínio harmonioso do homem sobre a natureza, os trabalhos de Carlito Carvalhosa problematizam também uma suposta harmonia social. Basta querermos passar a mão na cabeça desses seres híbridos e eles arreganham desafiadoramente os dentes – o que era maleável enrijece; o que estava próximo recua. E isso, é bom lembrar, também faz parte da vida nacional.
— O que é, o que é? Tem escama e não é peixe. Tem coroa e não é rei.
Não fossem tão singelas, charadas como essa descreveriam seres bem estranhos. Mas a infância tem mesmo dessas coisas. Trocar o lugar e a função dos objetos – fazer revólver de um chinelo, cavalgar garbosamente um cabo de vassoura, tornar um galho qualquer numa espada invencível. E então um simples abacaxi pode mostrar-se um híbrido de peixe e majestade, vivendo entre a água e o trono, insólito como o “encontro acidental de um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de autópsia”, de que falava Lautréamont e que fez a alegria dos surrealistas. Mas essa estranheza dura bem pouco. Apenas o tempo necessário para matarmos a charada e recolocarmos as coisas no lugar. Aos poucos as metáforas vão aderindo aos elementos a que se referem, até que ambos se recobrem com perfeição e tudo volta ao seu sentido corriqueiro: coroas são apenas braqueteas – as folhas do abacaxi –, e as escamas não passam das flores dessa bromeliácea.
Os trabalhos mais recentes de Carlito Carvalhosa parecem ter a forma dessas charadas. Tomemos por exemplo as esculturas de porcelana, expostas em 1997 no Gabinete de Arte Raquel Arnaud [pp. 28–41]. Foram maleáveis ao nascer, ao queimar se enrijeceram e voltaram a amolecer quando iluminadas. E poderíamos ir mais longe, pois os paradoxos apresentados por essas peças parecem não ter fim. Talvez venha justamente daí a absoluta falta de empatia desses trabalhos, pois eles reúnem qualidades plásticas que não deveriam conviver entre si, e que por estarem juntas põem nossa percepção numa situação difícil, já que é praticamente impossível acomodá-las num mesmo objeto.
As esculturas de porcelana têm um aspecto orgânico indiscutível. A irregularidade de sua superfície e de seus contornos indica que em seu interior ocorrem certos metabolismos, dos quais elas são apenas expressão. Pelos orifícios das peças vemos que elas contêm uma face oculta, que sem dúvida guarda uma vida ativa e misteriosa. De algum modo, interior e exterior se comunicam, embora não saibamos bem como. Mas tão logo nossa vista se detém mais demoradamente sobre essas superfícies, vemos que nada disso faz muito sentido. O esmalte que as recobre adquiriu uma aparência vítrea ao ser aquecido, que impede supor aí qualquer permeabilidade. Assim, aquelas regiões porosas, vitais, revelam-se puramente ilusórias, e passa a prevalecer a rigidez unívoca de um material asséptico, extremamente artificial. E então interior e exterior perdem o contato, tornam-se regiões autônomas, indiferentes ao destino um do outro. O que se mostrava vivo adquire a aparência de um produto industrializado: algo entre uma pia e um vaso sanitário. Talvez um bibelô de louça que um Oldenburg mais perverso resolvesse deformar. E aqueles orifícios que punham em contato dentro e fora se assemelham agora mais aos olhos de um peixe morto. Morto, mas ainda peixe – porque também não conseguimos nos desvencilhar completamente daqueles seres orgânicos que deslizavam à nossa frente, por mais que eles insistam em exibir sua superfície esmaltada.
Essa separação entre interior e exterior nos conduz a ver as esculturas como coisas feitas, e não mais como organismos que se desenvolvessem por si mesmos. Assim orientada, a percepção se detém na expressividade da mão que trabalhou os materiais – argila, gesso ou cera, que serviram como molde para a peça que será finalmente modelada em cerâmica –, deixando gravadas neles suas certezas e vacilações. Aos poucos, volumes vão se constituindo a partir desses gestos, e também suas formas reproduzem aquele fazer renitente, que quer retirar dos materiais alguma expressão. Vem daí o aspecto tortuoso e indeciso dos volumes, que insistem em não perder de vista a maleabilidade dos materiais de que partiram, ainda que venham a ser traduzidos numa outra substância.
Novamente porém outros elementos vêm conspirar contra a afirmação dessa tendência expressiva. A camada branca que recobre uniformemente as peças se interpõe entre os gestos e a determinação dos volumes. Nada é branco e brilhante impunemente. Os pequenos toques, as manipulações detidas perdem contato com a forma total dos corpos, pois uma unidade mais forte os domina: o branco frio da porcelana, com sua luz crua, hospitalar.
E os paradoxos não param por aí. Pois logo a luz incide sobre as superfícies rígidas, empoça em suas concavidades e dá aos trabalhos uma feição úmida. Em lugar de simplesmente escorrer sobre os volumes e revelar sua impenetrabilidade – algo que em boa medida marcou toda a tradição escultórica –, a luz é refletida irregularmente pelas camadas esmaltadas, voltando a proporcionar-lhes uma consistência mais plástica, como se as esculturas tivessem sido retiradas da água naquele preciso instante, perdendo assim parte de sua solidez. E o que dizer dos tubos regulares que se justapõem meio pateticamente às obras, buscando dar direção a coisas que se recusam a ser orientadas?
Como se vê, boa parte do interesse – e, por que não dizer, do incômodo – dessas esculturas de Carlito Carvalhosa reside numa espécie de convívio cindido entre aspectos formais que deveriam se apresentar unificados. Interior e exterior, gesto e volume, luz e consistência, direção e dispersão sobressaem alternadamente, sem que cheguem a uma unidade relativamente harmônica. E é essa dissociação dos objetos que os diferencia de trabalhos como o de Paulo Monteiro, Laura Vinci e Marcia Pastore, que à sua maneira lidam com formas semelhantes, embora resolvendo-as de maneira diversa.
Diante dessas discrepâncias, o observador se vê forçado a deslocar constantemente sua atenção, na tentativa de encontrar um modo de dispor a percepção mais adequadamente, aproximando as facetas apropriadas das peças. Entre bicho e bibelô industrial, as obras fogem continuamente de foco. E quando fixamos uma certa qualidade – digamos, a rigidez –, lá vem um outro elemento desvirtuá-la, por exemplo aquela luz que amolece as superfícies, embora também revele a sua textura artificial e enrijecida. Portanto, diferentemente das charadas, a discriminação dos vários aspectos formais das esculturas não encontra solução possível. Elas não fecham. Seria o mesmo que imaginar um trabalho com o vitalismo de Arp, mais o brilho de certas peças de Brancusi, além do gesto errante das esculturas de Giacometti. Tudo junto, e orquestrado por uma Eva Hesse ainda menos minimalista. E no entanto não há o menor vestígio de pós-modernismo nos trabalhos de Carlito Carvalhosa. O aspecto individualizado dos diversos elementos formais – volume, interior, luz, solidez etc. – está muito distante das citações pós-modernas, seja de traços de outras obras de arte, seja de aspectos arquitetônicos de épocas desencontradas. Aqui, a própria forma tem uma natureza cindida, ao contrário do que ocorre com as narrativas de parte da arte contemporânea.
Mas foi aos poucos que Carlito Carvalhosa chegou a essas configurações. Antes seu trabalho procurava um vínculo mais direto entre matéria e forma, indo de uma maior ênfase na construção a uma dimensão expressiva da matéria. Os quadros pintados com cera, sem pigmento, realizados entre 1985 e 1987 [pp. 110–121], tiravam um partido meio construtivo da maleabilidade e da translucidez do material1. Algumas áreas das obras – sempre regulares – recebiam mais camadas de cera do que outras. Com isso se obtinham regiões que reagiam diferentemente à ação da luz, organizando-se conforme o maior ou o menor grau de transparência. Mas mesmo nessas obras a estruturação dos espaços não era unívoca. As superfícies de cera possuíam uma constituição pouco homogênea. Aqui e ali se formavam pequenos grumos, as sobreposições de camadas criavam zonas mais opacas – e esses acidentes desviavam o olhar das definições mais regulares, detendo-no no que ocorria nas superfícies. O rebaixamento dos contrastes – forçando a percepção a identificar minuciosamente os processos construtivos que as produziram – acentuava a presença dos quadros enquanto textura e fatura, ao mesmo tempo em que precisava evitar qualquer movimento expressivo mais forte. Contudo, a indefinição entre construção e fatura, dada a necessidade de manter os quadros nos limites da diferenciação – o que sem dúvida derivava da influência do minimalismo –, fazia com que esses trabalhos aparecessem antes como um comentário à pintura do que como uma tentativa de levá-la adiante, o que, a meu ver, reduzia seu alcance estético.
Posteriormente, Carlito Carvalhosa decidiu tirar maior proveito da expressividade da cera e da parafina. Entre os anos de 1990 e 1994, esses materiais ganharam um aspecto decididamente orgânico [pp. 94–109 e 134–145]. Um corpo dúbio – movendo-se entre prazer e dor, lascívia e culpa – insinuavase a todo momento entre as camadas dos quadros. As superfícies macias, sensuais, falavam de lugares indefinidos, prontos a se entregar a deslocamentos de temperatura, e aptos a ser conformados pelo toque das mãos. A espessura das camadas de cera apontava a densidade de algo que recusava qualquer identidade imediata, já que supunha uma constituição complexa, em que aparição e oculta-mento trocavam de posição sem cessar. Tudo portanto apontava para uma disponibilidade praticamente sem limites, aberta a todas as aventuras. Mas tão logo surgiam algumas definições, assim que certas áreas se distinguiam nas extensões de cera, tudo mudava de figura: manchas arroxeadas, estrias de dor mostravamse aqui e ali, como se toda particularização daqueles corpos supusesse uma violên-cia que maculasse o que antes era pura densidade. Ou então pequenas protuberâncias despontavam para além das superfícies, num movimento vago que as impedia de se transformar em coisas mais de-lineadas. Assim interrompidos, aqueles volumes adquiriam um ar meio doentio, de algo que não pôde chegar a ser plenamente, pois teve seu desenvolvimento truncado. Nesses trabalhos, o corpo se revelava uma paixão inútil, pois sempre que se limitava – ou seja, sempre que passava de uma sen-sualidade difusa para uma sexualidade mais definida – misturavase a sentimentos de dor e deforma-ção.
As “Ceras perdidas” de 199495 [pp. 80–93] procuravam encontrar um meio-termo entre a dimensão construtiva dos primeiros trabalhos de cera e a natureza aversiva das obras que os sucederam. E Alberto Tassinari mostrou isso com precisão: “Certa visão de uma dessas esculturas pode mesmo provocar o asco. Uma outra visão da mesma escultura nos porá em face de algo como uma asa leve e inesperada. E tudo se faz sem muito barulho. Passa-se continuamente de uma coisa a outra. Feias entranhas começam pelo contorno de uma linha ondulada com graça. Ou então é um rasgo áspero que nos leva para dentro de uma luminosidade envolvente. Feitas de opostos – mas que convivem sem traumas –, as esculturas de Carlito Carvalhosa são como o ovo de Colombo”2. Nesses trabalhos ainda era possível a convivência de aspectos contrapostos, que se alternavam sem grandes problemas. A plasticidade da cera garantia ao mesmo tempo a evidenciação do processo construtivo – a lembrança dos cilindros que a moldaram – e de sua impossibilidade enquanto processo totalizante.
No entanto, as peças mais recentes do artista – os trabalhos de porcelana e as obras de gesso expostas pela primeira vez na V Semana de Arte de Londrina, em 1998 – tornaram aquela convivência algo realmente impossível, sem compromisso [pp. 42–51]. Não estou afirmando que Carlito Carvalhosa tenha conduzido sua produção com a clareza que a sumária descrição feita anteriormente pode sugerir. O movimento que conduz de um vínculo direto entre forma e matéria – seja ele mais construtivo ou mais expressivo – à sua dissociação irremediável também incorpora muito dos percalços por que vem passando a forma contemporânea. E penso que observar a sua trajetória a partir dos últimos e mais bem-sucedidos trabalhos – e não cronologicamente – ajuda a entender melhor as dificuldades enfrentadas pelo artista e a relevância alcançada pelo seu modo de ordenar as coisas.
Parece-me plausível afirmar que o domínio tecnológico sobre a natureza vem em parte da capacidade de isolar e tirar proveito de algumas qualidades dos materiais, colocando-as a serviço de objetivos produtivos: produzir vergalhões a partir da resistência do ferro, criar toda sorte de plásticos tendo como base o fracionamento do petróleo, obter celulose a partir de certas árvores, extraindo homogeneamente suas fibras. Minério de ferro, petróleo e árvores certamente podem servir para outras coisas ou, então, apresentarem-se apenas como são, e terão aparências diversas. Mas por intermédio daqueles processos adquirem uma feição homogênea que mal permite remeter aos materiais de origem.
O que Carlito Carvalhosa conquistou nas esculturas mais recentes foi a possibilidade de reunir de maneira desencontrada e tensa características de um mesmo material. E não penso que haja aí apenas um protesto ecológico, uma denúncia bem-sucedida contra a instrumentalização da natureza e as monstruosidades que produz. Suas formas cindidas põem antes em xeque a ilusão de harmonia e plasticidade que deriva dessa suposta capacidade de transformar tudo em tudo, chegando a considerar assim as próprias relações sociais. Suas esculturas então irão operar com elementos altamente discretos – qualidades como dureza, capacidade de refletir a luz, cor etc. –, mas com o intuito de torná-los avessos uns aos outros. E portanto inaptos a um manuseio harmonizante.
Mas para que essa operação alcançasse êxito também foi necessária uma habilidade duchampiana para lidar com as qualidades adquiridas pelos materiais. Isso já ocorria claramente com as porcelanas, que tinham seu aspecto doméstico e utilitário arrevesado pelo uso peculiar que o artista fazia delas. Com os trabalhos de gesso esse procedimento se acentua ainda mais. Gesso, para nós, converteu-se naquilo que é maleável, preliminar ou falso por excelência. Maleável porque misturado à água adquire qualquer forma; preliminar porque quase sempre, e não apenas na arte, o gesso fornece apenas um estágio intermediário, servindo de molde para se fazerem outras peças; e falso porque sua plasticidade permite que com ele forjemos aparências de toda sorte – tetos, sancas, capitéis –, sem falar que sua função de intermediário também reforça a característica de falsidade, pois ele nunca é o que ele próprio indica.
Ora, o que Carlito Carvalhosa faz interessa justamente por problematizar essas qualidades. A primeira operação é a mais simples: expor o gesso tal e qual e portanto retirá-lo da situação de simples mediador. A outra operação, ao contrário, já exige movimentos bem mais complexos. Para desfazer a impressão de maleabilidade do gesso foi preciso torná-lo quebradiço, e portanto não-plástico. Vem daí a necessidade de empilhar instavelmente os vários blocos, colocando-os na iminência de se desequilibrarem e partirem. Além disso, nos momentos em que a passagem entre os diferentes blocos se realiza quase sem interrupção – um pouco à maneira de Ulrich Rückhiem –, surge a imagem de uma massa de pedra que haveria sido talhada e reaproximada. Mas para que esse segundo passo possa ser dado cumpre reafirmar – e não negar – uma terceira característica: a falsidade. Pois apenas pela capacidade de se mostrar como aquilo que não é torna-se possível apresentar o gesso como um elemento sólido e não moldável. No entanto, tão logo reafirmamos o ar postiço do gesso fica difícil continuar observando-o como uma coisa não intermediária, como gesso exposto, pois rapidamente uma feição rochosa se insinua em sua aparência. E assim alternadamente.
A dinâmica fendida que Carlito Carvalhosa obtinha mais formalmente nas cerâmicas aqui se alcança por um deslocamento permanente das qualidades adquiridas por um determinado material – embora essas mudanças de ênfase venham a contaminar todas as relações formais, que se vêem obrigadas a exibir novamente dualidades problemáticas: aspecto orgânico e moldagem; fazer e crescimento; uma tensão entre unidade e partes etc. etc. Surgem então essas obras agressivas por sua precariedade e por seu desequilíbrio, mas que podem se tornar meigas porque foram moldadas; que se deixam enlaçar pelo espaço que as desenha, para logo depois se estilhaçarem numa revolta contra qualquer tipo de conformação; que são próximas, pois vieram da mão, e distantes em sua marcada suficiência.
Esse tipo de presença tende, sem dúvida, a reverter aquele movimento harmonizante que a dinâmica tecnológica impõe ao mundo contemporâneo. As peças são limpas, higiênicas – ladrilhos não são esmaltados à toa –, unitárias, feitas de um só material3... e no entanto separadas como água e óleo. E isso torna as cisões que presidem as esculturas ainda mais aversivas. Houvesse aí um descasamento ou oposição entre materiais de qualidades diversas – chumbo e madeira, por exemplo –, o resultado obtido seria menos contundente. Porque se afastaria da aparência homogênea e pacífica dos objetos e materiais produzidos industrialmente. Como nos desenhos obtidos pela prensagem de gesso líquido por duas lâminas de vidro, tudo aqui está perfeitamente ajustado e sem uma maior interação. A ânsia de intervir sobre os elementos e convertê-los em outra coisa se vê assim apresentada em sua agressividade: formas altamente unitárias e partidas de alto a baixo.
Mas, se essa dimensão das obras lhes dá um alcance universal – ao reverter a seu modo um processo de harmonização e conformação que ocorre em quase todos os cantos do mundo –, há nelas também um aspecto altamente particular. Inegavelmente os trabalhos mais recentes de Carlito Carvalhosa lidam calculadamente com um certo mau gosto – ainda que não tenham nada de kitsch, de busca de efeito. Por um lado, esse mau gosto decorre do uso popularesco do gesso e da cerâmica e de toda a sorte de produtos feitos com eles. São ambos falsos, baratos, indiscretos. Por outro, ele resulta da incompatibilidade entre os vários aspectos dos trabalhos, como se diz de alguém que não sabe combinar as roupas.
Ora, nada mais nacional – embora certamente não seja propriedade nossa – do que essa junção de coisas díspares e de natureza aparentemente diversa que permeia todas as classes sociais: na decoração ostensiva e pitoresca das casas ricas, na alimentação, nas letras de música, no nome dos filhos, nos interiores de bares e padarias, no modo de se vestir, de casar, de morrer etc. etc. etc. E não deixa de despertar simpatia aquele capricho – no duplo sentido do termo, de “arbítrio” e de “zelo” – que leva a juntar num mesmo ambiente espelhos, alumínio, fórmica e ladrilhos; ou os nomes dos pais nos filhos (donde Ednilton, Lucimara, Ednéia etc.); registros de linguagem desencontrados (“e hoje em homenagem ao meu fim / não fale dessa mulher perto de mim”); macarrão com arroz e feijão; móveis Luís XV e cadeiras da Bauhaus. Ou que leva a gerar essas brancaranas bundudas de peitos pequenos que são nossa perdição4. E são simpáticos justamente porque falam de falta de hierarquia e aproximação, seja de culturas, raças ou gostos. E porque supõem ausência de preconceito e liberdade.
Mas de um instante para o outro tudo se reconstrói, e o que era proximidade e zelo se transforma em tutela ou mandonismo, traços de uma sociedade plástica mas extremamente hierarquizada. Ao problematizar o domínio harmonioso do homem sobre a natureza, os trabalhos de Carlito Carvalhosa problematizam também uma suposta harmonia social. Basta querermos passar a mão na cabeça desses seres híbridos e eles arreganham desafiadoramente os dentes – o que era maleável enrijece; o que estava próximo recua. E isso, é bom lembrar, também faz parte da vida nacional.