Aberta a pedido de Carlito Carvalhosa, a grande vidraça da Galeria Laura Alvim, costumeiramente coberta por painéis, expõe aos visitantes da mostra Lugar Comum, a praia de Ipanema. Seu enquadramento assimila-a deliberadamente à exposição, não somente como vista permanente e indissociável daquela janela, mas, sobretudo, como um contraponto empírico-sensorial das questões que norteiam e articulam os quatro trabalhos que integram esta mostra.
Da janela vêem-se, numa sequência vertical, os postes da iluminação e da sinalização públicas, os coqueiros dos canteiros dos edifícios e aqueles das areias de Ipanema. Mais adiante outros postes, de madeira, armam as redes de vôlei que dão continuidade a verticalidade das árvores. Ao fundo, camufladas pelas copas vegetais dos primeiros planos, esgueiram-se as ilhas Cagarras. Elas parecem flutuar sobre a linha ilusória que marca o fim da água e começo do céu.
Dispostos uns depois dos outros, ou superpostos pelo olhar do visitante, os elementos dessa praia urbana, situados entre o ponto de vista do qual é observada (o janelão da Galeria Laura Alvim) e seu limite extremo, o horizonte, não seriam visíveis sem a luz do sol que a tudo banha, ou pelas luzes emitidas de inúmeros pontos que à noite replicam as estrelas do céu na constelação urbana.
Ainda que o contato sensorial direto com cena praiana possa nos proporcionar a experiência integral de sua unidade, uma observação atenta, ao contrário, aponta para a sua decomposição em elementos similares aos já aqui descritos.
Ao expandir, poeticamente, sua exposição até o horizonte de Ipanema, Carlito nos autoriza a entrecruzá-lo, com outro horizonte, aquele construído pela pintura clássica como elemento essencial da representação perspectivada do espaço tridimensional no plano do quadro. Todas as questões da representação da paisagem ocidental estão, portanto, aí referidas..
...”a paisagem fora pensada e construída como o equivalente da natureza, (...) dando forma a nossas categorias cognitivas e, consequentemente, a nossas percepções espaciais. Desse modo a natureza só podia ser percebida por meio de seu quadro; a perspectiva, apesar de artificial, tornava-se um dado da natureza, e as paisagens em sua diversidade pareciam uma justa e poética representação do mundo (...) No entanto, se atualmente se admite que a ideia de paisagem e sua percepção dependem da apresentação que se fez delas na pintura do Ocidente no século XV, que a pintura só parece “natural” ao preço de um artifício permanente”. .. (Anne Cauquelin, A invenção da Paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.P. 7)
E laborado ao longo da Renascença, este artifício é apresentado por Leonardo da Vinci, como uma nova ciência.
“ A ciência da pintura trata de todas as cores das superfícies e figuras dos corpos que com elas se revestem, e de sua proximidade e distância; esta ciência é mãe da perspectiva ...(que)... se divide em três partes; a primeira se ocupa apenas da definição dos corpos; a segunda da diminuição dos mesmos conforme as diversas distâncias; a terceira da perda da conjunção dos corpos a distancias variadas. A primeira (...) é chamada desenho (...) dela sai outra ciência que compreende a sombra e a luz, quer dizer o claro-escuro”... (Leonardo da Vinci. Tratado de La Pintura. Buenos Aires: Editorial Losada, 1943. P. 38, parágrafo 44).
Lugar comum pode ser tomado, portanto, como um entroncamento semântico-poético, formado a partir da atualização de trabalhos anteriores (mostrados nas exposições "Roteiro para Visitação", Salvador 2010; "Melhor assim", São Paulo, 2010; "Qualquer direção", Rio de Janeiro, 2011), para colocar em foco, no caso específico de sua edição nesta mostra, a questão da paisagem e seus desdobramentos na contemporaneidade.
Não se trata, portanto, da ilustração de questões verbo-narrativas da arte, mas da instalação de trabalhos (situações) independentes, produzidos por meio de materiais utilitários - como pontaletes de eucalipto, tinta, tecidos translúcidos, lâmpadas fluorescentes, espelhos, alumínio percutido e, neste caso , a vista da praia de Ipanema...- para mostrar, silenciosamente, alguns elementos essenciais da experiência e da criação visuais: sensorialidade, espaço, horizontalidade, verticalidade, profundidade, luz, sombra, especularidade, transparência translucidez e opacidade.
Em Lugar Comum foi criado um percurso no qual o observador adentra por três instalações até à sala final, dominada pela grande vidraça que torna a vista da praia uma paisagem da exposição. De acordo com o roteiro escrito por Carvalhosa para orientar a distribuição das instalações pelas salas da Galeria Laura Alvim, na entrada principal da exposição estão instalados
“ ... 40 ou 50 escoras (pontaletes) de eucalipto, usadas em construção civil, entre o chão e o teto, e apoiadas entre si. Esses pontaletes devem, se possível, ocupar também parte da varanda de acesso de acesso à galeria. São pintados de branco a partir de uma altura, criando um horizonte. Acima dele a madeira vira pintura. Penso também naquelas árvores pintadas de branco no interior (e também, não sei porque, nos postes que são pintados da mesma forma). Aqui a escora é meio poste meio árvore, e a pintura está para cima, e não para baixo. O branco apaga, ofusca.”
Os pontaletes podem ser tomados como uma primeira interseção entre a Galeria e seu entorno exterior. Eles sugerem que a sala de entrada do espaço expositivo está em reforma ou que os postes e as árvores da rua, elementos verticais da cena externa, se deslocaram para o interior da antiga residência de Laura Alvim.
Um último elemento ratifica a paisagem como questão poética central desse trabalho de abertura do Lugar Comum. Todos os pontaletes são de toras de eucalipto in natura. No entanto, em contraste evidente com a aparência bruta das partes inferiores, os seus topos estão pintados de branco, sempre a partir da mesma altura, contada a partir da base, um pouco acima da estatura média de um homem adulto. Estas áreas brancas marcam, conforme o próprio artista, o horizonte ausente. Retraçam-no não como desenho, mas como pintura, campo convencional destinado à representação da paisagem.
A inóspita ocupação do espaço pelas estacas dificulta intencionalmente a livre circulação do visitante, encurtando seu tempo de permanência na sala. Carlito Carvalhosa não quer, portanto, estimular a observação detida das propriedades estéticas do trabalho, mas permitir sua apreensão sensível, de mudas inflexões. Nesse sentido o artista contradiz a finalidade contemplativa da paisagem pictórica e a substitui pela experiência corpóreo- reflexiva, decorrente do trânsito por paisagens elementares que se desdobram no percurso por ele estabelecido.
À área ocupada pelos pontaletes sucede uma outra, dividida do teto ao chão, por nove planos de tecido branco translúcido, amarrados somente pelo topo e dispostos paralelamente, num sentido transversal ao da sala anterior Complementam essa segunda área, linhas verticais formadas por lâmpadas fluorescentes, colocadas nas paredes à esquerda e à direita dos tecidos. Não se trata mais aqui da impenetrabilidade do corpo, mas aquela do olhar, obrigado pelos panos a operar numa zona mínima de luz e translucidez.
Formada pela oposição frontal de uma parede coberta por pinturas feitas sobre espelhos e de outra coberta por lâmpadas fluorescentes a penúltima instalação parece problematizar, entre luzes e reflexos, a idéia de imagem como representação.
O percurso termina na sala da Janela que enquadra a praia. Barras de fluorescentes, semelhantes as das duas instalações precedentes, paralelamente montadas sobre o piso e sobre as paredes laterais, formam uma espécie de U luminoso. Na parede frontal à grande vidraça, dois trabalhos em alumínio percurtido formam uma outra janela, um quadro que mal reflete (ou que mal pode representar) o Lugar Comum da cena real situada a sua frente.
Da janela vêem-se, numa sequência vertical, os postes da iluminação e da sinalização públicas, os coqueiros dos canteiros dos edifícios e aqueles das areias de Ipanema. Mais adiante outros postes, de madeira, armam as redes de vôlei que dão continuidade a verticalidade das árvores. Ao fundo, camufladas pelas copas vegetais dos primeiros planos, esgueiram-se as ilhas Cagarras. Elas parecem flutuar sobre a linha ilusória que marca o fim da água e começo do céu.
Dispostos uns depois dos outros, ou superpostos pelo olhar do visitante, os elementos dessa praia urbana, situados entre o ponto de vista do qual é observada (o janelão da Galeria Laura Alvim) e seu limite extremo, o horizonte, não seriam visíveis sem a luz do sol que a tudo banha, ou pelas luzes emitidas de inúmeros pontos que à noite replicam as estrelas do céu na constelação urbana.
Ainda que o contato sensorial direto com cena praiana possa nos proporcionar a experiência integral de sua unidade, uma observação atenta, ao contrário, aponta para a sua decomposição em elementos similares aos já aqui descritos.
Ao expandir, poeticamente, sua exposição até o horizonte de Ipanema, Carlito nos autoriza a entrecruzá-lo, com outro horizonte, aquele construído pela pintura clássica como elemento essencial da representação perspectivada do espaço tridimensional no plano do quadro. Todas as questões da representação da paisagem ocidental estão, portanto, aí referidas..
...”a paisagem fora pensada e construída como o equivalente da natureza, (...) dando forma a nossas categorias cognitivas e, consequentemente, a nossas percepções espaciais. Desse modo a natureza só podia ser percebida por meio de seu quadro; a perspectiva, apesar de artificial, tornava-se um dado da natureza, e as paisagens em sua diversidade pareciam uma justa e poética representação do mundo (...) No entanto, se atualmente se admite que a ideia de paisagem e sua percepção dependem da apresentação que se fez delas na pintura do Ocidente no século XV, que a pintura só parece “natural” ao preço de um artifício permanente”. .. (Anne Cauquelin, A invenção da Paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.P. 7)
E laborado ao longo da Renascença, este artifício é apresentado por Leonardo da Vinci, como uma nova ciência.
“ A ciência da pintura trata de todas as cores das superfícies e figuras dos corpos que com elas se revestem, e de sua proximidade e distância; esta ciência é mãe da perspectiva ...(que)... se divide em três partes; a primeira se ocupa apenas da definição dos corpos; a segunda da diminuição dos mesmos conforme as diversas distâncias; a terceira da perda da conjunção dos corpos a distancias variadas. A primeira (...) é chamada desenho (...) dela sai outra ciência que compreende a sombra e a luz, quer dizer o claro-escuro”... (Leonardo da Vinci. Tratado de La Pintura. Buenos Aires: Editorial Losada, 1943. P. 38, parágrafo 44).
Lugar comum pode ser tomado, portanto, como um entroncamento semântico-poético, formado a partir da atualização de trabalhos anteriores (mostrados nas exposições "Roteiro para Visitação", Salvador 2010; "Melhor assim", São Paulo, 2010; "Qualquer direção", Rio de Janeiro, 2011), para colocar em foco, no caso específico de sua edição nesta mostra, a questão da paisagem e seus desdobramentos na contemporaneidade.
Não se trata, portanto, da ilustração de questões verbo-narrativas da arte, mas da instalação de trabalhos (situações) independentes, produzidos por meio de materiais utilitários - como pontaletes de eucalipto, tinta, tecidos translúcidos, lâmpadas fluorescentes, espelhos, alumínio percutido e, neste caso , a vista da praia de Ipanema...- para mostrar, silenciosamente, alguns elementos essenciais da experiência e da criação visuais: sensorialidade, espaço, horizontalidade, verticalidade, profundidade, luz, sombra, especularidade, transparência translucidez e opacidade.
Em Lugar Comum foi criado um percurso no qual o observador adentra por três instalações até à sala final, dominada pela grande vidraça que torna a vista da praia uma paisagem da exposição. De acordo com o roteiro escrito por Carvalhosa para orientar a distribuição das instalações pelas salas da Galeria Laura Alvim, na entrada principal da exposição estão instalados
“ ... 40 ou 50 escoras (pontaletes) de eucalipto, usadas em construção civil, entre o chão e o teto, e apoiadas entre si. Esses pontaletes devem, se possível, ocupar também parte da varanda de acesso de acesso à galeria. São pintados de branco a partir de uma altura, criando um horizonte. Acima dele a madeira vira pintura. Penso também naquelas árvores pintadas de branco no interior (e também, não sei porque, nos postes que são pintados da mesma forma). Aqui a escora é meio poste meio árvore, e a pintura está para cima, e não para baixo. O branco apaga, ofusca.”
Os pontaletes podem ser tomados como uma primeira interseção entre a Galeria e seu entorno exterior. Eles sugerem que a sala de entrada do espaço expositivo está em reforma ou que os postes e as árvores da rua, elementos verticais da cena externa, se deslocaram para o interior da antiga residência de Laura Alvim.
Um último elemento ratifica a paisagem como questão poética central desse trabalho de abertura do Lugar Comum. Todos os pontaletes são de toras de eucalipto in natura. No entanto, em contraste evidente com a aparência bruta das partes inferiores, os seus topos estão pintados de branco, sempre a partir da mesma altura, contada a partir da base, um pouco acima da estatura média de um homem adulto. Estas áreas brancas marcam, conforme o próprio artista, o horizonte ausente. Retraçam-no não como desenho, mas como pintura, campo convencional destinado à representação da paisagem.
A inóspita ocupação do espaço pelas estacas dificulta intencionalmente a livre circulação do visitante, encurtando seu tempo de permanência na sala. Carlito Carvalhosa não quer, portanto, estimular a observação detida das propriedades estéticas do trabalho, mas permitir sua apreensão sensível, de mudas inflexões. Nesse sentido o artista contradiz a finalidade contemplativa da paisagem pictórica e a substitui pela experiência corpóreo- reflexiva, decorrente do trânsito por paisagens elementares que se desdobram no percurso por ele estabelecido.
À área ocupada pelos pontaletes sucede uma outra, dividida do teto ao chão, por nove planos de tecido branco translúcido, amarrados somente pelo topo e dispostos paralelamente, num sentido transversal ao da sala anterior Complementam essa segunda área, linhas verticais formadas por lâmpadas fluorescentes, colocadas nas paredes à esquerda e à direita dos tecidos. Não se trata mais aqui da impenetrabilidade do corpo, mas aquela do olhar, obrigado pelos panos a operar numa zona mínima de luz e translucidez.
Formada pela oposição frontal de uma parede coberta por pinturas feitas sobre espelhos e de outra coberta por lâmpadas fluorescentes a penúltima instalação parece problematizar, entre luzes e reflexos, a idéia de imagem como representação.
O percurso termina na sala da Janela que enquadra a praia. Barras de fluorescentes, semelhantes as das duas instalações precedentes, paralelamente montadas sobre o piso e sobre as paredes laterais, formam uma espécie de U luminoso. Na parede frontal à grande vidraça, dois trabalhos em alumínio percurtido formam uma outra janela, um quadro que mal reflete (ou que mal pode representar) o Lugar Comum da cena real situada a sua frente.