publicado no catálogo da exposição "Carlito Carvalhosa" no Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 1995 e no livro "Carlito Carvalhosa", CosacNaify, São Paulo, 2000
Certa visão de uma dessas esculturas pode mesmo provocar o asco. Uma outra visão da mesma escultura nos porá em face de algo como uma asa leve e inesperada. E tudo se faz sem muito barulho. Passa-se continuamente de uma coisa a outra. Feias entranhas começam pelo contorno de uma linha ondulada com graça. Ou então é um rasgo áspero que nos leva para dentro de uma luminosidade envolvente. Feitas de opostos – mas que convivem sem traumas –, as esculturas de Carlito Carvalhosa são como o ovo de Colombo. O princípio que as pôs de pé ainda se deixa ver em sua simplicidade: o escorrimento de uma superfície cilíndrica de cera em direção ao chão [pp. 80-93]. Se muito esfriada, a cera originaria um cilindro. Tirá-la da fôrma antes do tempo poria tudo a perder. Com a cera no ponto, ou a procura deste, o artista controla a sua queda. Como velas no ?m, suas esculturas mostram um resquício da forma original, enquanto o restante opera um pequeno milagre de solidi?cação da chama. Pois é algo da incessante mudança de aspectos que nos cativa ao olhar o fogo que elas exibem. Sólidas mas vazias, opacas mas translúcidas, abstratas mas com ?sionomias animais que se insinuam, o jogo entre opostos não pára. Fatigadas, quase desastradas, elas tendem para o chão mais com desajeito que com jeito. Que não sejam apenas catástrofes, ou o malsucedido é o que importa. Desa?am o insucesso, des?guram uma forma, mas sem apagar de todo a lembrança de uma ordem anterior. Há nisso uma maneira de comunicar o mundo. Algo do “viver é perigoso”, algo das “impurezas do branco” e de tantas outras imagens de nossa língua, obrigada a falar de uma terra onde vida e sobrevida em geral se confundem, onde vidas e obras que soçobram ainda são, mesmo assim, vidas e obras. Mas é no modo como conjugam o con?ito que melhor individualizam um sentimento do mundo. Com suavidade, sem nenhum sinal de furor criativo, jogam tranqüilas com a forma e com o disforme. Não falam do con?ito com alarde, mas, ao mesmo tempo, como inevitável e a evitar. Por isso são frias, distanciadas. Os momentos serenos então prevalecem. Se são obras que se deixam arruinar, fazem-no para salvar fragmentos de calma beleza que resistiram à queda ou ao apagamento, ou, talvez mais correto, que se formaram com eles. Fragmentos que não são de todo comensuráveis com as obras e que por elas divagam. Soltam-se delas como se pertencessem a outros lugares. E, se é verdade que o incomensurável em geral aspira à grandeza, nas obras de cera de Carlito Carvalhosa tal não ocorre. Tanto nas esculturas como nas pinturas o desmedido existe em razão do menor, não do maior. São pontos de apoio que lutam contra um desastre total. São obras, assim, que nada têm de sublime, de épico, de barroco ou de outras maneiras da grandiloqüência. Por mais dobras e manchas que possuam, privilegiam e guardam o pequeno momento lírico. A desmedida, então, não é elogio do trágico ou do con?ito, mas meio de esfriá-los e de extrair da ruína as partes que salvam. Partes sem um lugar certo – manchas e superfícies à deriva –, mas que não nos faltam, se, nelas detidos, com elas nos deixamos desprender.
Certa visão de uma dessas esculturas pode mesmo provocar o asco. Uma outra visão da mesma escultura nos porá em face de algo como uma asa leve e inesperada. E tudo se faz sem muito barulho. Passa-se continuamente de uma coisa a outra. Feias entranhas começam pelo contorno de uma linha ondulada com graça. Ou então é um rasgo áspero que nos leva para dentro de uma luminosidade envolvente. Feitas de opostos – mas que convivem sem traumas –, as esculturas de Carlito Carvalhosa são como o ovo de Colombo. O princípio que as pôs de pé ainda se deixa ver em sua simplicidade: o escorrimento de uma superfície cilíndrica de cera em direção ao chão [pp. 80-93]. Se muito esfriada, a cera originaria um cilindro. Tirá-la da fôrma antes do tempo poria tudo a perder. Com a cera no ponto, ou a procura deste, o artista controla a sua queda. Como velas no ?m, suas esculturas mostram um resquício da forma original, enquanto o restante opera um pequeno milagre de solidi?cação da chama. Pois é algo da incessante mudança de aspectos que nos cativa ao olhar o fogo que elas exibem. Sólidas mas vazias, opacas mas translúcidas, abstratas mas com ?sionomias animais que se insinuam, o jogo entre opostos não pára. Fatigadas, quase desastradas, elas tendem para o chão mais com desajeito que com jeito. Que não sejam apenas catástrofes, ou o malsucedido é o que importa. Desa?am o insucesso, des?guram uma forma, mas sem apagar de todo a lembrança de uma ordem anterior. Há nisso uma maneira de comunicar o mundo. Algo do “viver é perigoso”, algo das “impurezas do branco” e de tantas outras imagens de nossa língua, obrigada a falar de uma terra onde vida e sobrevida em geral se confundem, onde vidas e obras que soçobram ainda são, mesmo assim, vidas e obras. Mas é no modo como conjugam o con?ito que melhor individualizam um sentimento do mundo. Com suavidade, sem nenhum sinal de furor criativo, jogam tranqüilas com a forma e com o disforme. Não falam do con?ito com alarde, mas, ao mesmo tempo, como inevitável e a evitar. Por isso são frias, distanciadas. Os momentos serenos então prevalecem. Se são obras que se deixam arruinar, fazem-no para salvar fragmentos de calma beleza que resistiram à queda ou ao apagamento, ou, talvez mais correto, que se formaram com eles. Fragmentos que não são de todo comensuráveis com as obras e que por elas divagam. Soltam-se delas como se pertencessem a outros lugares. E, se é verdade que o incomensurável em geral aspira à grandeza, nas obras de cera de Carlito Carvalhosa tal não ocorre. Tanto nas esculturas como nas pinturas o desmedido existe em razão do menor, não do maior. São pontos de apoio que lutam contra um desastre total. São obras, assim, que nada têm de sublime, de épico, de barroco ou de outras maneiras da grandiloqüência. Por mais dobras e manchas que possuam, privilegiam e guardam o pequeno momento lírico. A desmedida, então, não é elogio do trágico ou do con?ito, mas meio de esfriá-los e de extrair da ruína as partes que salvam. Partes sem um lugar certo – manchas e superfícies à deriva –, mas que não nos faltam, se, nelas detidos, com elas nos deixamos desprender.