Faz quase três décadas que carrego comigo por diferentes lugares em que morei uma pintura em encaustica de Carlito Carvalhosa. Atualmente ela está em meu escritório em casa. Fica paralela a meu olhar, à esquerda de mim. Sou notívago e gosto de luz indireta, com exceção da luminária de estudo. O quadro fica, assim, um tanto na penumbra. Foi pintado sobre uma base de madeira usada para fazer uma porta. Disposta na horizontal, sua feição muda, mas ainda guarda a espessura e as dimensões da madeira que foi totalmente preenchida de encaustica amarela, mas com as bordas deixadas sem pigmentação. É de um amarelo exato, sem saturação e que tem envelhecido um tanto junto comigo. Os anos duram no quadro como se atestassem os meus. Adorno diz que não é todo dia que uma obra de arte se abre para nós. Não é diferente o que se passa com a encaustica de Carlito Carvalhosa. Por uns tempos, inclusive, o acesso a sua arte foi bloqueado por um motivo prático, pelo empenamento da madeira. Carlito pegou a encaustica, levou para o ateliê e entrecruzou suas costas com ferro. Ele mesmo a pendurou de volta e desde então permanece rija. Isso foi há 25 anos e há três casas passadas.
Ao dito de Adorno se pode acrescentar que obras de arte numa casa tendem a se abrir ainda menos a seus moradores do que obras fora de casa. Acostumamo-nos a elas. E o costume - com suas rotinas - não é um aliado confiável da arte. Como o quadro atualmente se encontra não muito bem iluminado, o desfruto ainda menos. Mas além dessas três condições – a boa hora a que se refere Adorno, o hábito a vencer em casa e a iluminação reduzida – há uma quarta condição na encaustica amarela de Carlito Carvalhosa que impede que ela se abra a uma percepção estética e me retire de afazeres cotidianos. Ela foi feita fechada, se assim pode ser dito. A encaustica é maciça. Há alguns vincos verticais sutis que a dividem e no mais há ranhuras por toda parte, mas também sutis. A amarelidão da obra é que predomina. Não é um quadro que eu possa decidir olhar e por truques que aprendemos com o tempo consiga “abri-lo” para aprazer-me. Ele tem algo de parado, de contraído em sua massa, que não deixa facilmente apreciá-lo. Buraco negro amarelo. Mas então alguém chega, ou abro mais a janela, ou mexo na luminária e súbito a amarelidão toda ou uma parte, uma ranhura, tira-me do dia a dia e ganha autonomia. Reina no amarelo suas ranhuras como as primeiras ranhuras humanas ou, numa outra ocasião, como na luminosidade do pequeno muro amarelo da Vista de Delft de Vermeer descrito por Proust. Primitivo ou sofisticado ao extremo o amarelo reluz e sai de seu estado de anestesia e ganha uma dimensão estética que parecia para sempre adormecida.
Esse contraponto entre o anestésico e o estético está no cerne da poética de Carlito Carvalhosa. Entro na galeria e há um pano branco vindo desde o teto à minha esquerda que me impede o acesso ao espaço da galeria e à direita há um espelho. O que é isso? Como na minha encaustica tudo se encontra anestesiado. Mas não sei quantos passos adiante nem com qual perna no ar, e não o sei porque tudo foi muito rápido, e de repente meu movimento areja o espaço e o pano se move. Move-se com leveza, mas não menos devagar, como num adagio. Minha lembrança é a de um tempo em câmera lenta, no qual há tempo para que eu encaixe, agora, não a história de riscos e de amarelos na arte, mas essa história inigualável do panejamento e seus movimentos na história da arte. E é meu corpo, por um instante, instante imensurável, quem paneja o espaço, numa espécie de inversão profana e secular, da revelação do corpo de um deus grego pelas dobras do pano que nele mostra tanto o corpo quanto seus movimentos. Pequena grande epifania. Não cessa de se mover, lenta, abrindo-se e subindo pelo espaço em minha memória.
O estético, intenso, que surge repentino do anestesiado, é possível descrevê-lo em inúmeras obras de Carlito Carvalhosa. Mas não desejo ir além de uma pequena nota. Estou viajando. Não me encontro em São Paulo. Recebo por e-mail, porém, fotografias da exposição em Seul que Carlito Carvalhosa me mandou há dois dias. No espaço da galeria Kukje, grandes troncos de madeira estão dispostos de um modo assemelhado ao da exposição anterior no novo MAC de São Paulo. Na primeira fotografia reconheço a semelhança das exposições. Com o perdão da repetição, tudo está parado, inerte e como que jogado num lugar em que mal cabem. Mas conforme olho as fotografias as situações mudam. Não é o leve e demorado levantar do pano que me toma como nas obras anteriores de fechamento do espaço por panos, mas flashes, estampagens, no espaço e do espaço, como se de um quadro de muitas diagonais de Malevich elas tivessem pulado para o exterior da tela. Esvoaçar-se ou estampar, demora ou instante, do mesmo modo o estético vem e vence o anestésico. Pode não vir? Bem pode. Sempre pode. E nas obras de Carlito Carvalhosa mais ainda. Arriscam-se a serem simples coisas mais que o habitual da arte contemporânea. Mas se vencido o risco, como uma graça vinda, a arte estala.
Há algo novo, embora a poética seja a mesma, nessas duas séries das mais recentes obras de Carlito Carvalhosa. Não só os movimentos do olhar, mas também o percorrer com o corpo o espaço são exigidos para que o inerte ganhe vida. Há algo da antiga “participação do espectador” aqui. A expressão, de final dos anos 50 e início dos 60 é ambígua. O espectador sempre participou da arte. Mas descontada a ambiguidade, a ideia de que o espectador é autor da obra é retomada. Mas com sutileza. As instalações são presentes e desenhadas o suficiente para que se sinta que o autor é o artista. Deixa-se ao espectador, porém, o papel de dar arte a uma arte que, deveras, já recebera. Essa ilusão de criar o movimento do pano que se move lento ou dos troncos que se estampam num relance não é de todo ilusória, porém, embora toda preparada, sem ideologias do espectador-criador, pelo artista. Esse deixar parte para o espectador, esse dar a ele o momento estético um pouco mais que de hábito, é correlato do aspecto anestésico das obras. Tirar da obra e do artista para dar ao espectador (embora seja tudo decisão do artista) é uma ilusão, digamos, real. Meus movimentos ergueram o pano lentamente. Foi memorável. Fui leve. Saí um tanto do tempo habitual. Durou.
Volto de viagem e seguindo a sugestão de Carlito Carvalhosa vou ver a exposição de troncos no novo MAC de São Paulo. Não a pudera ver ainda. E pego a exposição um dia antes que termine. Que sugestão bem vinda! A mudança de aspectos da mesma obra que senti olhando as fotografias da exposição na galeria Kujke está presente. Mas o que vi como flashes e estampagens me foi dado pela sucessão das fotografias que veio no e-mail. As mudanças de feições rapidamente se apagando e ressurgindo me veio filtrada pela linguagem fotográfica. Outra coisa é percorrer ao vivo uma dessas exposições. Não fui a Seul. Nunca fui a Seul. Só pude ver ao vivo a exposição do MAC, assim como não vi todas as montagens de panos cercando os ambientes expositivos de Carlito Carvalhosa. E agora não são mais flashes ou estampagens que vejo, mas uma orquestração dos troncos que revelam ao caminhante um desvendamento das coisas no espaço e, com isso, o próprio espaço: alturas, larguras, profundidades. O revelam ao caminhante e somente ao caminhante. Como nos “Devaneios de um Caminhante Solitário” de Rousseau, a sucessão das diferenças se fundem como se fossem um longo e ininterrupto travelling que obedece desde cada um de meus mínimos movimentos e olhares até os mais amplos e espaçados.
Depois de vista e reconstruída na memória a exposição lembra troncos de uma derrubada dispostos meio ao acaso no chão de uma floresta. Há mesmo um trecho mais aberto na sucessão dos troncos como se fosse uma clareira. Assim como há um momento intransponível em que se tem que abaixar-se para passar sob um tronco e prosseguir. Usando os pilotis de Niemeyer como apoio, os troncos estão dispostos como se fossem vigas vindas à arquitetura dos pilares já existente. Estão, assim, em grande parte, numa posição, embora inclinada, mais próxima do horizonte. Em cada um dos muitos pilotis certo número de troncos se agarra e se lança ao ar e ao espaço. Não se trata propriamente de uma derrubada. Há muito poucos troncos de fato apoiados no chão. Só esses pesam. Os outros são leves, se lançam no espaço. Lancetam o espaço. E tudo se passa, em boa medida, à altura do olhar do espectador. Não é bem uma derrubada mesmo, pois não há chão. Não se replica a situação numa floresta a não ser no entrelaçar-se dos troncos. Dispostos no ar são poéticos como é poético um dos mais belos títulos de um livro de poesia brasileira, se a derruba real que não há fosse obra de um fazendeiro. Como no título de Drummond, não deixa de ser obra de quem cultiva, mas, como no título, obra de “Fazendeiro do Ar”. Obra posta no nível de nosso olhar. Erguida, não decaída. E erguida pela terceira vez. Antes foram troncos de árvores. E a fisionomia de cada um, com as ranhuras e caroços de cada um, até mesmo cascas da arvore que cada um foi, ainda guarda aspectos da madeira viva, de suas reentrâncias, seus nódulos, suas lisuras.
Erguidos pela terceira vez porque também guardam, além da madeira natural, a fisionomia de postes que foram. Aquilo que era vertical na natureza, que pouco se modificou, arrancado da natureza ainda a emula na verticalidade de um poste. Pedaços de ferro para conduzir fios estão por toda parte. São troncos, mas o uso que tiveram foi o de poste. Postura que a exposição desmonta e remonta no ar de modo poético. Floresta no ar, a cada núcleo ou feixe de troncos presos a um piloti, os troncos se separam, movem-se conforme nos movemos. Se há obras que bem ilustram a relação dialógica e não mais solipsista do espectador contemporâneo com a obra de arte contemporânea, essa é bem uma delas. Cada feixe de troncos, conforme o rondamos, deixa os outros estáticos, intocados. A relação entre o anestésico e o estético na poética de Carlito Carvalhosa aqui nos dá uma nova chave para compreendê-la. Ela se traduz na relação longe/perto. É de perto que tudo se movimenta, que a secção de um tronco no meu focinho se mostra como se fosse uma forma de Arp. É preciso andar. É preciso se aproximar.
E é ao andar no espaço do mezanino acima da exposição que percebemos ao olhar para o lado e abaixo como nosso translado horizontal provoca em cada núcleo mais próximo de troncos uma subida, um entreabrir-se, e a soma dos dois movimentos é uma espécie de onda, de sobe e desce dos feixes como se estivéssemos no mar, não em terra firme. Água, suas ondas, ar, seu lançar-se ao ar, terra, terra dos troncos que foram, os elementos se conjugam conforme nos movimentamos. Só faltaria botar fogo em tudo, não fosse o tremular do espaço conforme caminhamos nas figuras dos troncos se instalar como algo de uma chama. E aqui confesso que não esperava ir bater nos quatro elementos. Já escrevo em São Paulo e em meu escritório. O quadro de encaustica de Carlito Carvalhosa está, deste modo, à minha esquerda. Jogo a luz que foca a mesa de trabalho para o teto. Com essa luz indireta, aproximo-me do quadro, inerte, á minha espera. Aproximo-me mais e tudo começa a pulsar. Como os troncos, como os panos, como algo à mão, que poderíamos tocar. Mas que o olhar já toca nesse contraponto do anestésico e do estético, do longe e do perto. E agora contraponto do tátil e do visual. Esse ar que meu corpo deslocou e que levantou o pano na galeria que me fez vê-lo é de natureza tátil. Ao vê-lo, percebi que pelo ar o toquei, o ar. E fui tocado.
Ao dito de Adorno se pode acrescentar que obras de arte numa casa tendem a se abrir ainda menos a seus moradores do que obras fora de casa. Acostumamo-nos a elas. E o costume - com suas rotinas - não é um aliado confiável da arte. Como o quadro atualmente se encontra não muito bem iluminado, o desfruto ainda menos. Mas além dessas três condições – a boa hora a que se refere Adorno, o hábito a vencer em casa e a iluminação reduzida – há uma quarta condição na encaustica amarela de Carlito Carvalhosa que impede que ela se abra a uma percepção estética e me retire de afazeres cotidianos. Ela foi feita fechada, se assim pode ser dito. A encaustica é maciça. Há alguns vincos verticais sutis que a dividem e no mais há ranhuras por toda parte, mas também sutis. A amarelidão da obra é que predomina. Não é um quadro que eu possa decidir olhar e por truques que aprendemos com o tempo consiga “abri-lo” para aprazer-me. Ele tem algo de parado, de contraído em sua massa, que não deixa facilmente apreciá-lo. Buraco negro amarelo. Mas então alguém chega, ou abro mais a janela, ou mexo na luminária e súbito a amarelidão toda ou uma parte, uma ranhura, tira-me do dia a dia e ganha autonomia. Reina no amarelo suas ranhuras como as primeiras ranhuras humanas ou, numa outra ocasião, como na luminosidade do pequeno muro amarelo da Vista de Delft de Vermeer descrito por Proust. Primitivo ou sofisticado ao extremo o amarelo reluz e sai de seu estado de anestesia e ganha uma dimensão estética que parecia para sempre adormecida.
Esse contraponto entre o anestésico e o estético está no cerne da poética de Carlito Carvalhosa. Entro na galeria e há um pano branco vindo desde o teto à minha esquerda que me impede o acesso ao espaço da galeria e à direita há um espelho. O que é isso? Como na minha encaustica tudo se encontra anestesiado. Mas não sei quantos passos adiante nem com qual perna no ar, e não o sei porque tudo foi muito rápido, e de repente meu movimento areja o espaço e o pano se move. Move-se com leveza, mas não menos devagar, como num adagio. Minha lembrança é a de um tempo em câmera lenta, no qual há tempo para que eu encaixe, agora, não a história de riscos e de amarelos na arte, mas essa história inigualável do panejamento e seus movimentos na história da arte. E é meu corpo, por um instante, instante imensurável, quem paneja o espaço, numa espécie de inversão profana e secular, da revelação do corpo de um deus grego pelas dobras do pano que nele mostra tanto o corpo quanto seus movimentos. Pequena grande epifania. Não cessa de se mover, lenta, abrindo-se e subindo pelo espaço em minha memória.
O estético, intenso, que surge repentino do anestesiado, é possível descrevê-lo em inúmeras obras de Carlito Carvalhosa. Mas não desejo ir além de uma pequena nota. Estou viajando. Não me encontro em São Paulo. Recebo por e-mail, porém, fotografias da exposição em Seul que Carlito Carvalhosa me mandou há dois dias. No espaço da galeria Kukje, grandes troncos de madeira estão dispostos de um modo assemelhado ao da exposição anterior no novo MAC de São Paulo. Na primeira fotografia reconheço a semelhança das exposições. Com o perdão da repetição, tudo está parado, inerte e como que jogado num lugar em que mal cabem. Mas conforme olho as fotografias as situações mudam. Não é o leve e demorado levantar do pano que me toma como nas obras anteriores de fechamento do espaço por panos, mas flashes, estampagens, no espaço e do espaço, como se de um quadro de muitas diagonais de Malevich elas tivessem pulado para o exterior da tela. Esvoaçar-se ou estampar, demora ou instante, do mesmo modo o estético vem e vence o anestésico. Pode não vir? Bem pode. Sempre pode. E nas obras de Carlito Carvalhosa mais ainda. Arriscam-se a serem simples coisas mais que o habitual da arte contemporânea. Mas se vencido o risco, como uma graça vinda, a arte estala.
Há algo novo, embora a poética seja a mesma, nessas duas séries das mais recentes obras de Carlito Carvalhosa. Não só os movimentos do olhar, mas também o percorrer com o corpo o espaço são exigidos para que o inerte ganhe vida. Há algo da antiga “participação do espectador” aqui. A expressão, de final dos anos 50 e início dos 60 é ambígua. O espectador sempre participou da arte. Mas descontada a ambiguidade, a ideia de que o espectador é autor da obra é retomada. Mas com sutileza. As instalações são presentes e desenhadas o suficiente para que se sinta que o autor é o artista. Deixa-se ao espectador, porém, o papel de dar arte a uma arte que, deveras, já recebera. Essa ilusão de criar o movimento do pano que se move lento ou dos troncos que se estampam num relance não é de todo ilusória, porém, embora toda preparada, sem ideologias do espectador-criador, pelo artista. Esse deixar parte para o espectador, esse dar a ele o momento estético um pouco mais que de hábito, é correlato do aspecto anestésico das obras. Tirar da obra e do artista para dar ao espectador (embora seja tudo decisão do artista) é uma ilusão, digamos, real. Meus movimentos ergueram o pano lentamente. Foi memorável. Fui leve. Saí um tanto do tempo habitual. Durou.
Volto de viagem e seguindo a sugestão de Carlito Carvalhosa vou ver a exposição de troncos no novo MAC de São Paulo. Não a pudera ver ainda. E pego a exposição um dia antes que termine. Que sugestão bem vinda! A mudança de aspectos da mesma obra que senti olhando as fotografias da exposição na galeria Kujke está presente. Mas o que vi como flashes e estampagens me foi dado pela sucessão das fotografias que veio no e-mail. As mudanças de feições rapidamente se apagando e ressurgindo me veio filtrada pela linguagem fotográfica. Outra coisa é percorrer ao vivo uma dessas exposições. Não fui a Seul. Nunca fui a Seul. Só pude ver ao vivo a exposição do MAC, assim como não vi todas as montagens de panos cercando os ambientes expositivos de Carlito Carvalhosa. E agora não são mais flashes ou estampagens que vejo, mas uma orquestração dos troncos que revelam ao caminhante um desvendamento das coisas no espaço e, com isso, o próprio espaço: alturas, larguras, profundidades. O revelam ao caminhante e somente ao caminhante. Como nos “Devaneios de um Caminhante Solitário” de Rousseau, a sucessão das diferenças se fundem como se fossem um longo e ininterrupto travelling que obedece desde cada um de meus mínimos movimentos e olhares até os mais amplos e espaçados.
Depois de vista e reconstruída na memória a exposição lembra troncos de uma derrubada dispostos meio ao acaso no chão de uma floresta. Há mesmo um trecho mais aberto na sucessão dos troncos como se fosse uma clareira. Assim como há um momento intransponível em que se tem que abaixar-se para passar sob um tronco e prosseguir. Usando os pilotis de Niemeyer como apoio, os troncos estão dispostos como se fossem vigas vindas à arquitetura dos pilares já existente. Estão, assim, em grande parte, numa posição, embora inclinada, mais próxima do horizonte. Em cada um dos muitos pilotis certo número de troncos se agarra e se lança ao ar e ao espaço. Não se trata propriamente de uma derrubada. Há muito poucos troncos de fato apoiados no chão. Só esses pesam. Os outros são leves, se lançam no espaço. Lancetam o espaço. E tudo se passa, em boa medida, à altura do olhar do espectador. Não é bem uma derrubada mesmo, pois não há chão. Não se replica a situação numa floresta a não ser no entrelaçar-se dos troncos. Dispostos no ar são poéticos como é poético um dos mais belos títulos de um livro de poesia brasileira, se a derruba real que não há fosse obra de um fazendeiro. Como no título de Drummond, não deixa de ser obra de quem cultiva, mas, como no título, obra de “Fazendeiro do Ar”. Obra posta no nível de nosso olhar. Erguida, não decaída. E erguida pela terceira vez. Antes foram troncos de árvores. E a fisionomia de cada um, com as ranhuras e caroços de cada um, até mesmo cascas da arvore que cada um foi, ainda guarda aspectos da madeira viva, de suas reentrâncias, seus nódulos, suas lisuras.
Erguidos pela terceira vez porque também guardam, além da madeira natural, a fisionomia de postes que foram. Aquilo que era vertical na natureza, que pouco se modificou, arrancado da natureza ainda a emula na verticalidade de um poste. Pedaços de ferro para conduzir fios estão por toda parte. São troncos, mas o uso que tiveram foi o de poste. Postura que a exposição desmonta e remonta no ar de modo poético. Floresta no ar, a cada núcleo ou feixe de troncos presos a um piloti, os troncos se separam, movem-se conforme nos movemos. Se há obras que bem ilustram a relação dialógica e não mais solipsista do espectador contemporâneo com a obra de arte contemporânea, essa é bem uma delas. Cada feixe de troncos, conforme o rondamos, deixa os outros estáticos, intocados. A relação entre o anestésico e o estético na poética de Carlito Carvalhosa aqui nos dá uma nova chave para compreendê-la. Ela se traduz na relação longe/perto. É de perto que tudo se movimenta, que a secção de um tronco no meu focinho se mostra como se fosse uma forma de Arp. É preciso andar. É preciso se aproximar.
E é ao andar no espaço do mezanino acima da exposição que percebemos ao olhar para o lado e abaixo como nosso translado horizontal provoca em cada núcleo mais próximo de troncos uma subida, um entreabrir-se, e a soma dos dois movimentos é uma espécie de onda, de sobe e desce dos feixes como se estivéssemos no mar, não em terra firme. Água, suas ondas, ar, seu lançar-se ao ar, terra, terra dos troncos que foram, os elementos se conjugam conforme nos movimentamos. Só faltaria botar fogo em tudo, não fosse o tremular do espaço conforme caminhamos nas figuras dos troncos se instalar como algo de uma chama. E aqui confesso que não esperava ir bater nos quatro elementos. Já escrevo em São Paulo e em meu escritório. O quadro de encaustica de Carlito Carvalhosa está, deste modo, à minha esquerda. Jogo a luz que foca a mesa de trabalho para o teto. Com essa luz indireta, aproximo-me do quadro, inerte, á minha espera. Aproximo-me mais e tudo começa a pulsar. Como os troncos, como os panos, como algo à mão, que poderíamos tocar. Mas que o olhar já toca nesse contraponto do anestésico e do estético, do longe e do perto. E agora contraponto do tátil e do visual. Esse ar que meu corpo deslocou e que levantou o pano na galeria que me fez vê-lo é de natureza tátil. Ao vê-lo, percebi que pelo ar o toquei, o ar. E fui tocado.