I.
“Para que você toca a flauta,
Olimpo? Para que a música na solidão? Não tem pastor nem cabreiro para ouvi-la, nem Ninfa que na sua ausência dance feliz ao ritmo do seu som.”
Assim impreca Filóstrato ao adolescente cuja beleza desborda a paixão dos sátiros, enquanto dorme, e seu suor se mistura com o cheiro do capim onde seu corpo descansa.
Para que as harmonias do hálito que declinam os sons da música, enquanto o jovem Olimpo, como Narciso diante do espelho das águas, sopra? Para que a imagem tornada pele, pregada em rastros com estrias? Para que a música no abandono, na dormida, a morte?
Como uma premonição de Narciso, com quem nascem as imagens para se extinguirem imediatamente no instante primordial, o quadro 21 do Eikones de Filóstrato descreve uma cena de holocausto licenciosa e silenciosa: erguer-se-á
Olimpo, magnífico e nu, sobre a campina do desejo, e soará, majestosa e indolente, a sua flauta à beira de um lago prístino, para soprar apenas o canto inesperado da música sobre a pele d’água, e ver também tremer sua própria imagem que outros desejam, deforme na superfície enrugada que seu hálito move e dilacera.
Umas linhas antes do verdadeiro Narciso, Olimpo prefigura e já vê a beleza da imagem a se desfazer nas dobras que a deformam, enquanto seus contornos naufragam no drapejado da sua líquida e irritante densidade.
II.
Só a arrogância ignorante do
presente pode nos vender a ideia da modernidade como uma cena na qual, pela primeira vez, a
imagem morre.
Só a epidérmica certeza de um presente, que por isso descobriria o mundo a cada vez, pode nos fazer
esquecer de que, desde sempre, a aparição da imagem declina-se com sua expiração; o surgimento da arte, com sua agonia; a impulsão de erguer um monumento, com a efêmera duração da experiência que comemora ou exorciza; o olhar do que queremos tocar, com a distância que sua imagem nos impõe.
Para dizer esse objeto distante, eventualmente, os antigos conceberam o labirinto dos drapejados, pois o corpo é demasiadamente visível, e o que o insufla no desejo e na vida, camufla-se em suas
arestas e suores. O que o insufla: o hálito, a alma que não tem forma e tem, talvez, todas as formas. E, então, a obsedante dispersão das membranas externas que o cobrem – e pensemos em fragmentos de esculturas helênicas, túnicas mudas, nas telas e drapejados, nos hábitos, vestimentas, casulas, lençóis, cobertores, capas, ondas de seda esvoaçadas transparentes – serviram como um alfabeto para dizer com cada movimento uma verdade, com cada gesto uma revelação.
III.
Desde que penso na obra de Carlito Carvalhosa – brancas liquescências que ondeiam por acaso, espelhos pintados onde, em lugar do rosto de Olimpo, vemos a onda do seu hálito tornada pedra de cores, palavra escrita na solidão de um chicote invisível; o morro do Pão de Açúcar invertido no mausoléu do museu; uma árvore arrancada no céu dos grandes salões do convívio e do aparato –, penso unicamente em sudários que multiplicam suas dobras ante o sopro das passadas, o barulho, a solidão, a música, imensos velamentos para proteger a arquitetura dos nossos habituais costumes animais.
Então, para que serve a música no abandono; para que a imagem na pele ferida das águas? Para que se ergue o adolescente glorioso com sua flauta? Para que se esconde a sublime Ninfa detrás de seus panos?
Se só nos resta da imagem sua agonia, se já não há arte do monumento ou do corpo como representação; se a imagem se multiplica na vaidade das suas trocas pornográficas – não justamente na pornografia, onde ainda conservaria uma capacidade de convocatória impulsiva e momentânea, mas em seu sofístico mercado estético, que nos dizem essas cortinas brancas, essas árvores suspensas pelas raízes, esses espelhos turvos?
Que é de um espaço, de qualquer espaço, como do corpo que habitamos; que na gravidade da sua inscrição durável sobre o mundo se esconde a multiplicidade inapreensível do ar que o encarna, e o algarismo hermético do seu silêncio e seus ecos, que não ouvimos quando vemos, que tão
somente uma epiderme que o cubra por inteiro pode, como naquelas ninfas, como naquele rapaz, pastor de cabras boas, como naquele zéfiro voando, decifrar.
Para que a música na solidão? Para que as velas sem mastros içadas? Para passar por elas, nicho do nosso corpo, antes que ele aí estivesse. Para estar onde nunca estivemos.
Tradução do espanhol: Damian Kraus
“Para que você toca a flauta,
Olimpo? Para que a música na solidão? Não tem pastor nem cabreiro para ouvi-la, nem Ninfa que na sua ausência dance feliz ao ritmo do seu som.”
Assim impreca Filóstrato ao adolescente cuja beleza desborda a paixão dos sátiros, enquanto dorme, e seu suor se mistura com o cheiro do capim onde seu corpo descansa.
Para que as harmonias do hálito que declinam os sons da música, enquanto o jovem Olimpo, como Narciso diante do espelho das águas, sopra? Para que a imagem tornada pele, pregada em rastros com estrias? Para que a música no abandono, na dormida, a morte?
Como uma premonição de Narciso, com quem nascem as imagens para se extinguirem imediatamente no instante primordial, o quadro 21 do Eikones de Filóstrato descreve uma cena de holocausto licenciosa e silenciosa: erguer-se-á
Olimpo, magnífico e nu, sobre a campina do desejo, e soará, majestosa e indolente, a sua flauta à beira de um lago prístino, para soprar apenas o canto inesperado da música sobre a pele d’água, e ver também tremer sua própria imagem que outros desejam, deforme na superfície enrugada que seu hálito move e dilacera.
Umas linhas antes do verdadeiro Narciso, Olimpo prefigura e já vê a beleza da imagem a se desfazer nas dobras que a deformam, enquanto seus contornos naufragam no drapejado da sua líquida e irritante densidade.
II.
Só a arrogância ignorante do
presente pode nos vender a ideia da modernidade como uma cena na qual, pela primeira vez, a
imagem morre.
Só a epidérmica certeza de um presente, que por isso descobriria o mundo a cada vez, pode nos fazer
esquecer de que, desde sempre, a aparição da imagem declina-se com sua expiração; o surgimento da arte, com sua agonia; a impulsão de erguer um monumento, com a efêmera duração da experiência que comemora ou exorciza; o olhar do que queremos tocar, com a distância que sua imagem nos impõe.
Para dizer esse objeto distante, eventualmente, os antigos conceberam o labirinto dos drapejados, pois o corpo é demasiadamente visível, e o que o insufla no desejo e na vida, camufla-se em suas
arestas e suores. O que o insufla: o hálito, a alma que não tem forma e tem, talvez, todas as formas. E, então, a obsedante dispersão das membranas externas que o cobrem – e pensemos em fragmentos de esculturas helênicas, túnicas mudas, nas telas e drapejados, nos hábitos, vestimentas, casulas, lençóis, cobertores, capas, ondas de seda esvoaçadas transparentes – serviram como um alfabeto para dizer com cada movimento uma verdade, com cada gesto uma revelação.
III.
Desde que penso na obra de Carlito Carvalhosa – brancas liquescências que ondeiam por acaso, espelhos pintados onde, em lugar do rosto de Olimpo, vemos a onda do seu hálito tornada pedra de cores, palavra escrita na solidão de um chicote invisível; o morro do Pão de Açúcar invertido no mausoléu do museu; uma árvore arrancada no céu dos grandes salões do convívio e do aparato –, penso unicamente em sudários que multiplicam suas dobras ante o sopro das passadas, o barulho, a solidão, a música, imensos velamentos para proteger a arquitetura dos nossos habituais costumes animais.
Então, para que serve a música no abandono; para que a imagem na pele ferida das águas? Para que se ergue o adolescente glorioso com sua flauta? Para que se esconde a sublime Ninfa detrás de seus panos?
Se só nos resta da imagem sua agonia, se já não há arte do monumento ou do corpo como representação; se a imagem se multiplica na vaidade das suas trocas pornográficas – não justamente na pornografia, onde ainda conservaria uma capacidade de convocatória impulsiva e momentânea, mas em seu sofístico mercado estético, que nos dizem essas cortinas brancas, essas árvores suspensas pelas raízes, esses espelhos turvos?
Que é de um espaço, de qualquer espaço, como do corpo que habitamos; que na gravidade da sua inscrição durável sobre o mundo se esconde a multiplicidade inapreensível do ar que o encarna, e o algarismo hermético do seu silêncio e seus ecos, que não ouvimos quando vemos, que tão
somente uma epiderme que o cubra por inteiro pode, como naquelas ninfas, como naquele rapaz, pastor de cabras boas, como naquele zéfiro voando, decifrar.
Para que a música na solidão? Para que as velas sem mastros içadas? Para passar por elas, nicho do nosso corpo, antes que ele aí estivesse. Para estar onde nunca estivemos.
Tradução do espanhol: Damian Kraus